domingo, 29 de março de 2015

Tenho especial interesse por aviões
que caem e um carinho
por aqueles que os derrubam
desde que não sejam
em terra os senhores
da guerra
mas por exemplo pilotos
ou copilotos
que se trancam nas cabines
e decidem que a queda
já vinha
acontecendo
o que faremos
é ir
de encontro a ela.

sexta-feira, 20 de março de 2015

na
Argentina
eu sentia muita falta
de comer
coxinhas
acarajés e pastéis
de Belém

eu sentia
muita falta
de comer mamão papaia
mas me contentava
milanesa com batatas
a parrilla
era como
o churrasco

os escravos africanos sequestrados no Brasil
comiam terra pra matar-se e saciar a saudade
ensinada nos livros de História como banzo

desde que o primeiro hominídeo olhou pra frente
na África e viu que seria gigante o seu horizonte
sentiu na boca o gosto ardente de refluxo do futuro

por isso
há milhões de anos
temos papilas que se tocam
apenas por períodos curtos

na maior parte do tempo
só temos a nossa própria
saliva

quinta-feira, 19 de março de 2015

A bondade raspou os joelhos na calçada. Um time de futebol chutou e a bondade entrou redonda entre as traves, com gritos de gol, a bondade foi pega e cortada e destrinchada e exposta vendida em ganchos bandejas o sangue acumulado insistia em não coagular mesmo entrando nos buracos da gengiva expelido do mamilo mordido um vírus camuflado a bondade era muito querida. Ao levantar de manhã todos os dias, ao se deitar à noite todas as noites, nesse luxo que é ter uma cama e pernas grandes a bondade olha longe, sem inveja, segue contente porque todo mundo está contente. Ela é um satélite que rastreia a gente. Ela é o que insiste em não aniquilar, e guarda o sol na geometria, e guarda a arma na bainha, e resiste e enfim esgarça. Então gargantas roxas, rios de angústia, alegria transborda.
deve ser bom
ter um bicho grande
entre as pernas
você se move
com seu osso
na boca
e lhe lambe
entre os dedos
dos pés, ele dá
água e comida
e bronca e carinho
e você
late chamando-o
ou como
se ele
não
existisse

sexta-feira, 13 de março de 2015

A noite se repete
ainda não se dissipou
e já é de novo noite

meu cachorro
põe a cara na janela e assobia
uma carência que eu não posso resolver

muito menos enquanto como uma banana
porque acordo com um buraco dentro
na altura do estômago

Cachorro, banana, estômago
e estava tudo dormindo
agora há pouco, antes das janelas se abrirem

antes
das janelas se abrirem
tudo dormia comigo

e sonhava com viagens perdidas
ladrões, amigos,
assassínios que não aconteciam

Mas o dia lá fora tinha que entrar
atravessa as paredes e as mortes
estala entre os dentes da vontade

o dia insistente
já de novo ainda se repete
encontra a minha noite

um sol cobrindo a lua escura
aniquila todos nós
com luz

quinta-feira, 12 de março de 2015

O cachorro
avisa que existe
quando late

deixe que latam
os cachorros
que existam

que sejam
tão latidores
que latam tão alto

que todo
o universo
aumente

de volume
e o ouvido
do barulho

não ouça
mais o triste
uivo

sábado, 7 de março de 2015

oração

Era antes que eu tivesse
um crânio de cachorro
vivo fofo sobre
o meu pé e outro
deitado ali mais adiante
antes que eu dissesse
"meus cachorros"
e pudesse dizer de qualquer coisa
posterior a mim:
é minha

A vó arrancou do concreto do quintal
a planta crescia contra as crenças e chamava
comigo ninguém pode

era pecado tê-la
pois Deus tudo podia

Antes que eu tivesse um quintal
meu, alugado, e dois cachorros
meus, deles mesmos, e um concreto
quebrado

pela folhagem herege
cresce
décadas depois de morta
por minha vó, ela sim,
morta

pra sempre

Antes que eu tivesse visto
Deus
ser tédio e turbulência
arrancando
raízes sempre renovadas
e adubando de medo e dúvida
manhã e escuro consequentes

contra os quais

nada
pode