segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Engulo
o sêmen composto
na próstata de líquidos
vários

de pus e de esperma
e restos de urina
o que amo se forma
do lixo do corpo

atravessa a memória
e dutos de baixo
do avesso da boca

o afeto produto
é nojo e é gozo
e engulo

receita

eventualmente
eu deixo
de tomar os remédios que me mantêm
com diminutas taxas de vírus contáveis e vivo
por um tempo
inestimável, por isso mesmo
difícil de desejar

o médico profeta
novas cepas desses microrganismos
mais resistentes à química que outros primatas
como eu mas
vestidos de jalecos e carros em laboratórios
inventam e batizam e transformam em
patentes, evoluindo resistirão
a tudo o que de mais avançado a medicina tem
a nos
oferecer

então
um medo
de nada que eu enxergue se cola
à curiosidade de ver
o que virá de amanhã
em diante, e obediente
aos desígnios, aos inimigos, eu tomo
de novo todos os
comprimidos

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Eu abro a janela no dia seguinte
ao assassinato de Zumbi dos Palmares
e vejo os matos que crescem
nas frestas do meu quintal cercado de paredes
se moverem no vento e os meus cachorros
vêm me saudar antes de irem
latir pra algo que não vejo

Não sou nenhum desses elementos
nem o polígono de céu que transborda entre os varais
mas estamos tão próximos que eu me sinto
um pouco fresta, um pouco matos
vento, parede, cachorro, invisível
meio céu, meio polígono
um pouco herói
um pouco assassino

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Acumuladas, as pedras
na minha vesícula são lidas
por um laboratorista de traços
monásticos do oriente que me diz
do limitado tempo da vida

e dos perigos em silêncio
no silêncio do fígado uma cirrose
no futuro da gordura acumulada

Anuncio,
aos parentes e aos amigos,
minha morte está marcada
chorem agora vocês podem
que a de vocês está também

nas runas que o oráculo
do aparelho de ultrassom torna
em ruínas, meu corpo
cospe a imprecação dos médicos
avalanche e diz que venha
o que vier

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Com local

Quantos pés são necessários pra que o chão se rompa? Quanto chão é necessário pra sustentar plantas cemitérios sete bilhões de pessoas dois hemisférios e um número de espécies em declínio antropoceno?

Minha mãe morreu. Quando voltei pra casa, aquela caverna em silêncio inteira agora só pra mim, a televisão os bibelôs tudo esperava o pó que cairia. Metade da vida é limpeza, a outra metade é retorno da sujeira. E eu não teria mais a desculpa da enfermeira, dos horários dos remédios, da troca de fraldas periódica. E da mãe ali, totêmica, viva por insistência, impedindo a passagem dos homens. A primeira coisa que ele fez foi entrar na internet, o ano é 2001, hxh c/local 1m71 bco olh cab cast claro 43a atv liberal. Virou a casa mais animada do quarteirão, sendo que ninguém podia falar nada, porque a propriedade era privada e depois das dez da noite ele se trancava e via filme dublado.

Uma noite de sonho as rodas da cadeira rangeram. Era a mãe que voltava. Pálida, cheia de terra e vermes na boca. Ele a chamava de "senhora". A senhora está bem? Todos os mortos se levantavam e voltavam pras suas casas. Reuniões de cúpula do governo demoraram dias e não decidiram nada de expressivo. A mãe era morta como em vida: silenciosa, presente, assustadora. E de novo exigia cuidados. Tantos que ele próprio não se conteve e se enforcou pendurado do lado de dentro na porta do quarto. Depois de ter tomado banho e guardado seu corpo em roupas limpas. O corpo, esse gigante discreto.

Os dois cadáveres viram do sofá da sala os aviões se chocando contra as Torres Gêmeas em Nova Iorque e se abismaram muito. Este é um mundo difícil para os mortos. A mãe já era praticamente só crânio e cabelos ralos caindo. O terceiro milênio, no calendário dos cristãos, nem bem começava e já trazia tanta tristeza para aquelas famílias em Nova Iorque.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

uma rodovia chamada raposo
aqui do lado de casa
hoje andando nela
com meus dois cachorros
vi um gambá entre as grades do condomínio
primeiro pensei que fosse um rato
tão comum quanto os carros
mas escondido
mas depois reconheci
dos livros de biologia
um gambazinho

querido gambazinho
sem me aproximar
com medo de ataques fedentinas
os cachorros alucinados
com a luz dos faróis
nem perceberam
mas estávamos
no que dependeu de mim
em tal momento de comunhão
mamífera

os caminhos da evolução
dispersos em algum momento
você subindo na árvore
os cachorros de pescoço na coleira
eu o maior animal
daqueles cinco metros quadrados
de mato coberto de fuligem
jardim da rodovia
com nome de assassino

também ele era um mamífero
queridos irmãozinhos
caminho evolutivo

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

lendo o poeta que ninguém leu

cheguei
meia hora atrasado no trabalho
com desculpas de vazamento no banheiro
e carta problema meu nome no serasa

agora olho as mesas vazias
da redação depois que as revistas todas fecharam
e escuto outros colegas
falando de política de um jeito que desprezo
enquanto isso fico lendo
o poeta que ninguém leu

e que morreu anônimo
e teve uns versos resumidos
pelo garimpo dos parnasianos de hoje em dia

nós
inconformados
com a sobreposição dos estratos minérios
que nos veem como partículas de minérios
e não como seres complexos que amam odeiam
cedem seus corpos aos patrões e pensam em política
em poesia e no serasa

que ninguém me leia nesta vida
não importa
os ossos e a carne de eróticos a erodidos
vão ser lidos pelos átomos
de um planeta cego
imenso glóbulo

Papai era um monstro

lembro bem do dia em que descobri
que papai era um monstro

#

a cama dele tinha quebrado no meio
e o colchão estava esmagado no chão

#

os sapatos eram cortados nas pontas
por onde saíam os dedos dos pés monstruosos

#

a escova de dentes era muito grande
e dela pingava uma gosma verde

#

fui juntando todas essas pistas e descobri:
papai era um monstro

#

à noite era muito perigoso dormir
porque ele podia abocanhar minha perna

#

então eu fiz uma armadilha pra ele

#

papai ficou preso naquela arapuca
e não conseguia sair

#

todo dia eu sentava na frente dele
dava comida e escutava ele falar coisas medonhas

mas ele não conseguia me alcançar
com sua boca e suas garras

#

muitos anos se passaram
até que eu resolvi soltar ele da prisão

#

hoje, papai está bem mais manso
e eu, que cresci, também virei um monstro

#

todas as noites a gente janta junto
e cada vez é um que cozinha e lava a louça

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

a bola de neve do demônio

Uma sombra passou diante dos olhos e foi sugada pela distância. Quando olhou pra baixo, sua sombra não estava mais ali. Saiu correndo atrás daquela que pensava ser ela, e que devia ser, porque todas as pessoas têm suas sombras presas no chão, grudadas nas paredes, nadando diluídas na água. A luz do sol alto queimava os prédios e o asfalto. A sombra fugida era veloz e nunca mais foi vista.

Todas as sombras passaram diante dos olhos. Como se um ralo aberto de luz tragasse elas. E as pessoas correram atrás de suas sombras e se amontoaram nas esquinas, várias morreram pisoteadas. Notícia que não daria em nenhum jornal. Os jornalistas, correndo atrás de suas próprias sombras, não compareceram às redações. O dono do jornal estava em sua sala acolchoada e não percebeu nada.

Ninguém é mais rápido que a escuridão. Nem eu. Em algum lugar incógnito, as sombras de todo o mundo se acumulam, se amontoam e formam um novelo escuro e crescente. A bola de neve do demônio. Que vai nos soterrar quando estivermos, dia claro, procurando no chão a noite que vem do alto.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

escola da vida

mas o pior de tudo
é quando você percebe
que há fatos e pessoas movendo-se
em torno uns das outras
e te deixam no canto da quadra
sem a bola sem amigos
esperando dar o sinal
de volta pra sala

as coisas acontecem
e são acontecidas
mas nem sempre os meninos
querem você por perto

criança eu inventei de um dia
conversar com as formigas

elas não paravam pra ouvir
e ainda assim meus primos riram
me repreendendo dizendo que o que eu fazia
era coisa do demônio

tentei escrever um poema que transformasse a realidade e não deu certo

é triste quando você não consegue
dizer o que pensa
e ao dizê-lo mudar os fatos
e ao mudá-los melhorar as coisas

que talvez nem possam
ser melhoradas e os fatos
não possam ser mudados
e os pensamentos não possam ser ditos

então não deveria ser triste
porque bem dizia a minha avó
"o que não tem remédio
já está remediado"

as coisas os fatos o pensamento e as palavras
tudo remediado

Canção de ninar o desespero

É mais fácil imaginar o fim
do mundo e da água
e dos pandas
da paciência

do que o fim do capitalismo
e das paixões pelas bandeiras e
do asfalto impregnado
no chão no coração

é bem mais fácil
que tudo isso
passar pelo fim da vida de indivíduo
corpo nome
tanta gente já passou
sem que o mundo
a grana
os ursos pandas
acabassem

Dorme, criança
enquanto houver saliva na garganta
enquanto a cruz assombra
os pesadelos com caravelas e navios negreiros
soberanos nas fronteiras

Dorme e sonha
com a cara gorda de um panda
finado, macio, companheiro

Depois acorda

sábado, 1 de novembro de 2014

raquel não ansiava por casar-se
quando ofereceu água ao homem e aos camelos
como ia ela saber que era servo de abraão
e que sua generosidade e até presteza em dar
de beber a um estranho eram sinais
plantados pelos anjos para que sua família
a entregasse em viagem matrimônio a isaque?

também eu não ansiava ser
solteiro nem casado nem tampouco
chegar aos trinta anos convicto
da minha homossexualidade vacilante e num estado
da república federativa onde é iminente
a crise hídrica

se vir camelos e um homem
na rodovia raposo tavares com túnica
sedento certamente oferecerei a eles
a água que for possível

mas os sinais dos anjos do senhor
mudam a cada momento só a sede permanece
a mesma através dos estados civis e do tempo