quarta-feira, 29 de junho de 2016

autorretrato

Recebo do mundo oxigênio e seus venenos
a herança está estilhaçada em todas as partes
há cinquenta anos eu nem era nascido e recebemos as primeiras fotos do planeta vindas lá de fora
essa esfera azul marmórea vai se distanciando a cada dia que passa
não sei se fico mais sozinho ou acompanhado quando acompanho esse movimento
bebo leite que muito provavelmente tem coágulos de pus de vaca oculta em matadouro
vou vivendo esquecido de que também sou um mamífero

mas gostaria de dar tetas fartas e ninhos pra todas as crianças que dormem nas ruas
pobre daquele que se esquece que existem crianças dormindo nas ruas

nosso autorretrato na sonda Voyager 1 no ano arbitrário de mil novecentos e noventa
o chamamos de pálido ponto azul
é nossa esperança
e Carl Sagan já disse melhor do que direi
que tudo tudo tudo que existe e existiu está ali, aqui
neste grão de pó suspenso num raio de sol

devolvo ao mundo gás carbônico, fezes, urina
e a insistência na lembrança dessa cor longínqua:
o azul

segunda-feira, 27 de junho de 2016

a estrela

o essencial é invisível aos olhos

um feixe de luz entra pela minha janela transformando o ar

esmegma de monóxido de carbono que sufoca são paulo

em anel de saturno, só que reto e finito

que bonito

os ácaros voam agarrados a pedaçúnculos de pele morta

atravessados, como eu, pelos neutrinos exteriores à galáxia

são leves no furo do poço que o planeta imprime no espaço-tempo

somos elásticos por causa das ondas de gravidade que banham a gente

mundo incansável

eu resultado da sua equação existo pra compartilhar tudo isso

e perpetuar e trazer tédio e destruição pro universo como um todo

cada coisa tem sua razão de ser

pode ser loucura

pode ser não ser

obrigado, espírito de deus concebido pelos meus antepassados

neste começo de tarde de pés frios vivendo no inverno do trópico de capricórnio

aceito as paredes da casa alugada e os raios cancerígenos da torre de celular aqui do lado

céu escuro iluminado

bem-vindo, dia igual aos outros

sexta-feira, 24 de junho de 2016

refazer as palavras pegue tudo o que se construiu até agora
templos de deuses poderosos esquecidos de idiomas mortos
a delegacia de polícia está ali na esquina esperando o seu corpo de carne
tijolos garrafas plásticas adobe pegue todos os materiais possíveis

fazer edifícios de palha
improváveis torres trinta andares qualquer brisa derruba elas nem chegam a ficar prontas
palavras são palha
palavras são osso

reciclagem infinita, escavações curiosas do passado, tralhas que acumulam

um atropelo de abrigos e de absurdos nada dura
pra sempre olhar em volta / encher pulmões / se erguer do chão

quarta-feira, 22 de junho de 2016

elegia

posso pensar átomos tocados pela língua
e rotações desta Rocha imaginária

em torno do próprio eixo, posso pensar
suas pernas abertas uma porta, entrar por elas
na casa exposta às tempestades do Tempo

nossos sonhos destelhando-se e nos deixando
sem o abrigo do látex e da potência

uma guerra entre vírus e Gulliver
amarrado entre tochas e o tempero do churrasco

nós dois separados e entre nós outros tantos átomos
que por acaso não formaram esta língua que eu passo
nos dentes trincados na gengiva que sangra

ó Big Bang Misterioso Acaso Deus Criador
Começo Inalcançável e Múltiplos Fins Imaginados

os físicos perscrutam vocês nas frestas do conhecimento

e enchem minha cabeça de mitos que remetem a mim mesmo

enquanto a língua áspera e as hemorroidas insistem cuidados médicos

e a Morte sussurra à porta sem pressa testando as chaves

encontrar uma pista de pouso entre as cordilheiras fechadas do Dia

suas pernas abertas sem átomos ou medo ou movimentos planetários

eu rezo pra que as feridas nunca nasçam na sua pele com cheiro de gente viva

a batalha é uma dança dói ela só termina quando for vencida
os meus cachorros devem me ver escrever
que nem os latidos pro nada a corrida sem sentido dos gatos
minhocas que querem escapar da composteira apesar de estarem no ambiente certo e com bastante comida

me pergunto se esse urubu voando em círculos sobre a nossa cabeça tem algum sucesso na sua busca
se aquele gambá que vi na beira de estrada no ano passado subido na árvore
tinha filhos e desejo de vê-los vivos

nessa curta vida devo ter escrito mais palavras do que a atual população de gambás do planeta
se amarrassem elas nos rabos dos bichos que incômodo seria se moverem

convivo com prazer incomodado entre os animais que sobreviveram à minha presença
e escrevo sem saber de mim mais do que sei dos meus companheiros
do mesmo jeito que observo meus cachorros latindo para o nada
e a corrida sem sentido dos gatos
cada vez menos dias pela frente
e mais cachorros em volta

o dia é uma ilusão de ótica / sem rabo pra abanar
os corpos dos cachorros vão se acumulando em estradas jardins terrenos baldios

é um chão canino / recheado de ossinhos
preso no buraco da gravidade

ele late quando é noite em cada canto do mundo existe a noite
barriga pra cima pra todo mundo pisar em cima

e a barriga é a parte mais frágil do corpo animal
exposta sem estrutura óssea minha nossa senhora rogai

pela grande barriga celestial os bichos deslizam
o Tempo te faz carícia

segunda-feira, 20 de junho de 2016

tudo se equilibra
no tênue fio da vida

e caminha inconstante
entre o depois e o antes

até que cai, num susto,
diante dos olhos do público

mas não se espatifa no chão
(a morte é uma tela de proteção)

sábado, 18 de junho de 2016

fiações, fusíveis, parafusos

Trança humana

A arte é uma rede de comunicações no tempo.
Há subestações de alta potência:
Homero, Dante, Shakespeare, Bach, Goya...
E há fiações, fusíveis, parafusos, isolantes,
Singelos e imprescindíveis.

(Paulo Mendes Campos)

sexta-feira, 17 de junho de 2016

a força

No centro da margem da superfície do planeta

ninguém se interessa pelas coisas que eu escrevo além de dois ou três amigos

a conta bancária evidencia o destino do poeta

e a poesia é uma prova de fogo no inverno das mudanças climáticas

palavras são usadas há milhares de anos pela espécie

dos pixels rupestres não sobrou sequer a marca-d'água

botas pisando nos rostos o banco de dados das íris

bombas de choro o comício intenso estratégias políticas

eu produzo sintaxes sem muita novidade os textos se anunciam

arautos do já era uma vida de espera e contundência

meus nomes rasurados das capas do livro de Deus morto

e morto vigiarei as conquistas dos séculos vindouros

de alma trancafiada na historicidade do corpo incomodado

receba os malabares de versos incapazes de cavar vulcões

a lava invisível lavará a vossa incompetência

com bilhões trilhões neutrinos atravessam os corpos sólidos chocando-se no Acaso

o vácuo é teu destino Universo completo de matéria escura

venham a mim os miseráveis somos todos de vontade de ser um Todo

suplantado pelo novo feito mofo repousa sobre a pedra

gratidão por estes átomos e desgosto pelo esmalte do dente rachado

a Terra é ouro cansaço e força e projeção de Finitude

ponto pálido que anula o abismo e a altitude

recolhem-se as Crianças atentas ao que não tem Forma

e formam um tecido uma atração outra ciranda



meu trabalho é desaparecer assim que for possível

deixar pegadas que confundam o caminho do Impossível

domingo, 12 de junho de 2016

inverno paulista

As marcas de suor no lençol
fino cobrindo o seu colchão
no chão são ainda mais finas

os pelos espalhados na sua perna
também não servem pra te proteger
do frio que vem

quando o planeta dá seus giros
e confirma a mesma sina talvez
um cataclismo ambiental nos mobilize

acumulados uns nos outros
a gente se acolha e se ampare
de um jeito primeira vez experimentado

menino uma incógnita
esse futuro junto e esse presente
isolado

terça-feira, 7 de junho de 2016

a fila

conheci todos os meninos do planeta

eles faziam fila pra passar na minha frente

a gente flertava mas nenhum deles ficava

perto só uma pedra e eu sentado

um cachorro me fazia companhia

rosnando cada vez que eu me mexia

para olhar mais de perto os meninos

óculos mostram rugas ocultas

nos rostos eles vão envelhecendo

e nos pelos cotovelos nos mamilos

mas que fila, não acaba, nunca

segunda-feira, 6 de junho de 2016

sumário brasileiro

País com nome de madeira e dinheiro

Cor, temperatura e esperança de futuro

As fronteiras são erosões bem calculadas

É impossível te conhecer com os pés

Com a boca, então, nem se fala

Uma gonorreia adormecida em cada família

Os estupros te povoam e engrandecem

Nunca antes se disse tanto em língua portuguesa

E golpes de estados que mudam tudo continua o mesmo

Desertos povoados de flores brutas improváveis

Um quilômetro quadrado com a maior biodiversidade do planeta

Muros torturas meninos de rua declamam poemas

Fardas e firulas e forrós nulos caixa de som da madrugada

Dez entre dez terroristas e traficantes preferem teu passaporte

Um abismo de vantagens se abre à nossa frente

Não tem nada que não se pague com o riso e o crediário

Pátria do apesar

Um tsunami de açúcar ameaça afundar a ilha

Bocas abertas te esperam

Corações cariados te esperam

os bichos, a gente e a morte

os animais sabem a morte o tempo todo

a gente pensa que é exclusividade nossa, bobagem

a gatinha parada no braço do sofá se repete

"tudo que eu vejo terá um fim", e o cachorro

quando descansa das brincadeiras

se diz "bom, acho que não morri ainda"

os pardais enquanto voam

desejam

que a morte venha depressa

"e que eu não sinta a queda"

ser humano, se desfaça

das suas ilusões de finitude

viver a morte

não é teu privilégio