quinta-feira, 23 de outubro de 2014

você
sobe as escadas da casa ao lado
com pernas que foram moldadas
pelo tempo e está próxima
da morte porque o tempo
toma o que dá

eventualmente se encherão
de vermes esses músculos
magros cujo contorno aparece
movendo a pele que eu vejo
entre os seus pelos

cadela
de vida que dura
um sexto do que se espera da minha, você
sobe as escadas
da casa ao lado e me mostra que ainda
não estamos podres
se podemos
ser vizinhos
e nos ver, de vez em quando

terça-feira, 14 de outubro de 2014

falésia

Não tinha uma linha oculta que trouxesse aquele corpo à pedra presa ao corpo do planeta e por isso fixa, enquanto o outro amontoado de matéria se diluía na distância, debatia-se ossos se expondo o vermelho pálido na espuma salgada do mar, a gente ficou vendo sem mãos que salvassem ninguém exceto a gente, presa no ar nos próprios pés, na sorte de não estar se afogando triturada num abismo próximo de quem nada pudesse fazer, é sorte. Ou a sorte outra, de virar aos poucos paisagem, dispersão não deve ter angústia, medo, desejo de calor de um corpo frio e morto, alimento de peixes de gaivotas e de gentes que comam peixes e gaivotas ou se alimentem dos animais que se alimentam desses, não é sorte a palavra. Minério, átomo, movimento sem começo, inércia e carbono acaso programado pra fugir do que ameaça, pra englobar o seu carinho e assim continuar, ele mesmo ou outro, vivo vivo. Preso à rede de linhas ocultas que nos prende ao tempo escuro, nenhuma delas livre ao contato da extremidade de um braço aberto em mão, em dedos que se agarram: à água, espatifados, a eles mesmos.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

quando a cabeça
viu pequenos os pés
ficou tão impressionada
que deixou de ver
a distância de ar e tempo
que existe entre olhos e dedos

como os dentes, juntos
e os pelos nas narinas, crescendo
pretendo ser inteiro
distância entre os átomos
e células grudadas
um corpo cada vez
mais distância e densidade



quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Nasci hétero e desinteressante e não me lembro
se feliz ou nunca quis
nascer teria ficado comprimido
afogado no líquido quem diria amniótico
sem lembrança de amigos e amantes e adultos
na igreja cantando vinde meninos vinde
a Jesus

hoje continuo
sem interesse por mim mesmo
e escutando em
pesadelos aquele coro de túnicas
vermelhas se dizia a paz de Deus
que enchesse o templo

e sou hétero
no sentido
mais estrito de ser outro
ou nem isso e nem eu mesmo
nem a ponte de um ao outro
nem o tédio nem o pilar
que segura tudo aquilo fico
vendo a distância
o dia em que a matéria resolver
acabar e aí espero
um sumiço

que o interesse
não tivesse
nascido

terça-feira, 7 de outubro de 2014

I hear my voice among others

quando
o menino vê
que há uma calçada
do outro lado, ele corre
pra alcançá-la
ainda
que chegar não seja
um ponto de chegada

ele
alterna as pernas curtas
em passos que o encaminham
para
um destino longe dos meus olhos
e dos olhos dos meus cachorros
atentos, tanto eles quanto eu,
aos estalos provocados
pelo trote de um menino
indiferente à irrelevância
de correr
por diversão

então meus cães
indiferentes também eles
à tristeza
com que eu olho o menino
ir embora
põem-se a puxar
meus braços atrás
dos seus focinhos tão curiosos
e urgentes
como as pernas
dele

*

é urgente
respirar e é urgente
beber água e excretar
o que o teu corpo não
precisa ou digere, é
urgente que eu me encontre
entre a criança e os cachorros
prestes
a completar
trinta anos de olhos
pernas de corpo
e de nome, ricochete
entre as urgências
de outras pernas de meninos
de desejos
e cachorros, é urgente
que estes trinta, testemunhados
retornos do sol
em cima
encontrem
o tema de uma vida
entre carros e urgências
e meninos e
animais amarrados à coleira ao alimento
e aos rabos que abanam
irrelevantes e atentos
quando eu chego

*

entre os agasalhos de lembrança
da família e o salário recolhido
das feridas e os remédios ofertados
pelo programa nacional
de combate à aids

entre os livros e os beijos
e a poeira e o medo e
as frieiras e os conflitos

o dia racha
espaço pra nascer
o abismo raso
dos cachorros
o trote solto, ignorante
de um menino
e eu me encontro, perdido
entre eles
puxado de um lado para o outro

entre o futuro
a gravidade
as notícias
e a morte

entre os cachorros
e a empresa
e a família
e o desejo
de ter um filho

*

que todos
os bichos corram
sem ter onde chegar

e que ao chegarem
se esqueçam
do caminho que fizeram

e que respirem
por urgência
sem vontade de saber

(quanto menor o coração
mais depressa ele se move)

e que o destino feche os olhos
e deixe-se levar
pelos cachorros