segunda-feira, 30 de novembro de 2015

crime e castigo

A capa mostrava uma silhueta

O busto escuro de um homem em que dentro
reproduziam-se abismos do mesmo busto
em cores infinitas até que acabassem
no limite da tinta e do olho

Eu tinha treze anos e poucos amigos
aquele livro era um escudo nos intervalos
contra os meninos que cresciam no meu peito

Aos poucos fui ganhando outros contornos
e vários meses depois de ter começado
fechei o livro sem ter entendido
muito da história

Mas nunca mais me despedi
da São Petersburgo escura e molhada
com febre, perdido na escola, os meus treze anos

sábado, 28 de novembro de 2015

Roberto Piva

Leão

Devorador de garotos

Jaguar dos edifícios da morte

Desces e cavas com as garras

Tantos mais círculos do Inferno

Quanto dias tuas palavras morderão

O futuro da metrópole perdida

Grandes predadores extintos

E vindouros

Te saúdam

Leão

Devorador de garotos

Jaguar dos edifícios da morte
Meus cachorros me ensinam todo dia

Que a vida pode não ter sentido

Além de deitar comer dormir olhar para o humano em frente

Que pensa "Pra você,

Cachorro,

A vida não tem sentido", todo dia

Eles me ensinam que a vida

Tendo ou não sentido

Ei-la

sábado, 14 de novembro de 2015

Nunca estive em Paris
nem em Madagascar
não sei onde é Parintins
só sei o nome de lá

nunca andei pela margem
do finado rio Doce
desconheço seus peixes
quaisquer que eles fossem

e no entanto só penso em lá
e cá sinto um peso no peito
e já vou arrumar um outro jeito
de ficar sem poder escapar

desse mundo maluco por um fio
amarrado na ponta de um fuzil
a outra ponta acesa num pavio
curto e dentro de um céu azul anil

que fica em cima de mim
e do povo de lá
do confim dos confins
que são os mesmos de cá

cheios de outros mins
indo pro mesmo mar
aberto e fundo sem fim
sem poder se mudar

pra um planeta que fosse igual a este
num universo bem diferente deste
onde não precisasse nem pudesse
escolher entre a gente e os peixes

ia ser muito lindo, isso eu sei
viver, só viver, e viver bem
mas enquanto não chega, se é que vem
o futuro é o presente que se tem

em São Paulo e Paris
e em Belém do Pará
e até mesmo onde
ninguém foi nomear

então ficamos aqui
aqui e em todo lugar
o nosso tempo é aqui
a nossa casa é já

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Argiloso

O quarto dono da empresa entra na suíte subterrânea e senta na poltrona de couro. "Continuamos esperando?" Cuspe na gravata pra limpar a mancha de geleia. Um complexo sistema de ventilação atravessa o centro do planeta e liga as antecâmaras da desgraça espalhadas por aí: filtro de ar, salão de jogos pras crianças, uma corrente no pescoço de cada faxineira. Quilômetros acima, seguindo por uma claraboia de chumbo e recolhimento, um gêiser de gás carbônico libera na lama os detritos aéreos dos donos da empresa.

*

Tinha tudo quanto é peixe no planeta. Hoje não tem mais. A presidenta Dilma está afogada em argila no centro do Palácio do Planalto. Os tecidos dos seres antes vivos começam a petrificar e depois eles fermentam e formam um combustível que daqui a milhões de anos uma raça de outro mundo vai descobrir e dizer: isso não nos serve. Nesse dia, os filhos dos filhos dos filhos etc. dos executivos vão se arrastar até a superfície, de pele evoluída, mucosa fina depois de tanto tempo no escuro. Os alienígenas vão olhar pra eles e sair de mansinho. Um vai dizer pro outro: eu, hein.

*

Cada culpado tem certidão de nascimento, nome e sobrenome, e cara de pau. Ninguém vê nada disso. Os peixes, por outro lado, não têm nada. Nem as casas, os cavalos, os caipiras mortos. O quarto dono da empresa descansa a cabeça no travesseiro de plumas e inspira o ar puro do bunker. Não tem abalo sísmico, justiça divina, revolta que o alcance. Vista do espaço, a Terra é um ponto marrom e monótono.

*

"Continuamos esperando?"

Os donos da empresa se olham entre si, depois voltam a olhar a tela. Fotos de satélite atualizadas por minuto mostram que é, pois é, não tem mais jeito. Um ponto verde, no entanto, se mantém no mar de lama, porque o relevo e os ventos e o acaso fazem dessas coisas. Eles se olham salivando. Um puxa o cordão que traz a cozinheira e nas mãos dela uma bandeja com iscas de peixe, dedos de meninos, mulheres vivas. O que os executivos comem? Onde vivem? Como se reproduzem? Como pode? Com a cabeça erguida, eles se olham e se desejam, polidamente:

Bom apetite.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

O amor e eu

o amor entra numa fria. Estávamos nós dois, eu e o amor, na porta da geladeira, a gente estava. Olhando pra dentro como quem vê a si mesmo. E sem se enxergar. Então um litro de leite agarrado em caixinha na mão, camadas de papel e cola e alumínio, um copo vazio em cima da pia. Depois o líquido branco, insuspeito, passado na água sanitária. O amor toma o primeiro gole, tem um troço e morre.

*

O velório do amor foi o mais triste que você já viu. Deitado em caixão fechado, sem enfeites de flores, sem a roupa escolhida pela família. Eu morri e minha mãe comprou um terno e eu queria ser enterrado com a camiseta dos Ramones, mas não protestei. Eu e o amor em cemitérios diferentes, porque as nossas famílias não querem dar pinta. A camiseta dos Ramones empesteou o armário e a casa e a lembrança que minha mãe teve de mim. Secou à sombra, o instinto materno: tudo que ela queria era um filho no sol, limpo e insuspeito. Mas eu bebi a água sanitária. Fui enterrado fora da cidade.

*

Jesus me recebe de braços abertos, nas mãos as feridas purulentas que ele limpa no meu terno. A gente se abraça e eu enfio o nariz no peito magro do Cristo / sinto um cheiro de guardado, coitadinho. O amor, ele me informa, foi destroçado nos trinta círculos do Inferno. Trinta e um, agora. Eles aumentam. Jesus põe o braço ossudo sobre o meu ombro gordo e me mostra esse novo lar: o Paraíso. Simulacro de coisas do mundo, mas envolvidas numa luz clara, terrível. Enfim ele me deixa debaixo de uma figueira e eu adormeço. No meu sonho de espírito sem corpo, encontro outra vez o amor. Sinto o toque morno dele no meu rosto. Estamos num quarto escuro e alegre, longe de todas as coisas. Aqui tem um cheiro podre, de coisas apodrecendo. Eu e ele apodrecemos. Nunca fomos tão felizes.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

indícios

Em cidade estranha
no ônibus, eu atravesso
em olhos a janela em busca
de olhos alheios que me digam
você está aqui
estrangeiro

E agora, nesta cidade repetida
todo dia em sonhos de fuga
e apocalipse, que
olhos eu vejo me vendo, dizendo
você também
é estranho
e é o mesmo

Viajamos por dentro
dos glóbulos das ruas do mundo
e nem sempre
nós vemos
os indícios
da viagem

Caras flutuando sobre roupas,
anúncios de juros e de jóias,
pessoas que poderiam
mas nunca estarão
nas nossas bocas