sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

antifagia

espalho veneno na minha pele
pra espantar os animais que me querem

uma forma fundamental de vigília
negarmo-nos como almoço dos outros

ingiro anualmente litros de agrotóxico
na mesma esperança de não virar comida

que tal se nos deixarmos sem cuidado
como bichos e minérios, como musgos?

domingo, 18 de dezembro de 2016

domingo

o cachorro lambe as feridas na garagem
via streaming tudo é tão mais fácil

este é um dos muitos domingos
passados com consciência do calendário
minhocas decompondo coisas no escuro
uma bola de fogo imperdoável lá no céu

tudo indiferente
e igualmente
importante para a vida no planeta

exploro meus próprios claros e escuros
são minhas feridas a vida a garagem
e quando passo pomada no pus do cachorro
falo com ele em palavras que ele não entende

tudo que quero
é que você dure
cachorro
com uma vida não tão dura

ele me olha grandes globos lacrimosos
depois vira as costas
deita longe
ele se morde o quanto pode

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

as antiaventuras de super-ninguém

sempre infeliz
com tudo que existe debaixo do seu nariz
o Super-Ninguém

atravessa os prédios e os tédios
em busca de aventuras

em sua companhia
seu fiel escudeiro
o Nada Cachorro
se coça e fareja
e se lambe o dia inteiro

que perigo
encontrará
nosso herói
nesta tarde de sol?

desce
do céu
uma nave!
é a nave
do Planeta Nada
de onde há cinco anos
o Super-Ninguém trouxe
seu fiel Nada Cachorro

quem poderá
ajudar
defender
o Planeta Terra
de semelhante invasão?

eis que
SUPER-NINGUÉM
e
NADA CACHORRO
surgem sorrateiros
no meio do caos
da multidão

seus superpoderes
são não ser nada
nem ninguém
nem pássaro e nem avião
Discretos Salvadores do Universo

a cidade
ruidosa como uma ferida
não percebe o perigo
dessa nave invisível

com seus superpoderes
Super-Ninguém
desafia os inimigos
para uma batalha

mas um raio de luz
sem aviso
cai sobre o Nada Cachorro
e o leva levitando
pro vácuo do espaço

Super-Ninguém
pula e chora
liga pra polícia
mas a polícia não dá bola
e nada detém
o recado alienígena

sozinho
derrotado
Super-Ninguém
se recolhe e junta forças
para a próxima batalha

domingo, 4 de dezembro de 2016

morreu o poeta ferreira gullar

na vida a gente só fica
aprendendo a viver
mastigar posar pra foto

cair e ficar de pé quando dá
e a melhor posição
pra dormir

quando a gente morre
todo mundo pega o nosso corpo
e faz o que for esperado

põe jornais embaixo do cadáver
vela e choro e enterra
o morto, seus aprendizados

no escuro em sossego
a matéria fervilha
e os vermes ensinam

agora a estar
de acordo com o nada
orgânico de tudo

sábado, 3 de dezembro de 2016

hóspede

que
apertada
e folgada
calada
na lava
da lábia
e molhada
só sim
sem não
aberta
colada
na calefação
parede
macia
que espasma
essa boca
te sirva
de casa
quanta
coisa
quântica

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

enquanto os cachorros dormem nas tocas de madeira lixada
simulacros de casas bucólicas
azulejos e água sanitária meus ácaros
em maior número que todos os dias da minha vida
lençol que não se troca
o mundo é uma virilha
que bom

seus fungos suas assaduras
a pele que não se acostuma
ao toque do dedo estrangeiro e estremece
corpo inteiro aterro sanitário casa dos ratos da alma irmão burro
ninado na imundície e na satisfação melhor essa coceira
esse furúnculo que sente do que o nada
nunca sujo do que a ideia
asséptica de ascese espírito
com sua coceira
incoçável

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

escrever sendo um corpo que dorme

já é a quinta ou quanta vez
que à beira do escuro
de mim durante o sono

penso em um verso, e logo
em outro
as palavras se encaixam perfeitas

mas o corpo
junto com a cabeça
não deixa

que eu me levante
acenda a luz, pegue o caderno
ou mesmo ligue o celular

e na luz do quarto escuro
escreva
essa beleza, essa fresta

de paraíso num relance
aberta
no fechado do meu inferno

então eu durmo
um pouco é só preguiça
outro tanto é só vontade

de nunca mais acordar
pras palavras amanhecidas
atrasadas

mas eu acordo
(até agora)
e quando acordo

não me lembro
do verso que se mostrou
em aleph pleno

penso
que adolescente
eu não perdia essas oportunidades

e varava a noite
em fúria
explorando cavernas em cadernos

já hoje
fico triste
de ter perdido o verbo

e me conformo
porque afinal
dormir era mesmo

mais preciso
mais eficaz
e mais legal

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

os palhaços assassinos

No fundo da mente
brilhando no escuro
entre balões de gás
e tigres maduros
moram palhaços
com ódio de tudo

que saem nas ruas
armados e atentos
com facas, machados,
e bastões de beisebol
querendo matar
quem vier pela frente

se você anda só
nas esquinas à noite
ou se perde em silêncio
nas esquinas da mente
de repente aparece
o palhaço feroz

sorrindo com dentes
de facas pontudas
e correndo estridente
às gargalhadas
atrás de você
enquanto os outros aplaudem

se você acredita
no perigo iminente
mil palhaços a mais
saem de trás dos arbustos
pra te matar
linchado ou de susto

se você duvida
de tudo isso
os palhaços voltam
àquele circo
pra esperar sua visita
pacientemente

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

espelho

os cachorros são indescritíveis
imperscrutáveis são inenarráveis

agora eles deitados
um só bicho horizontal
cada um
da ponta do rabo que eu não tenho
à ponta do focinho que me falta

e mesmo assim
tão melhores do que eu
que quando me deito pareço um míssil
um casulo mole uma lança morta
eles têm patas que desprendem
do cilindro afinado nas pontas e pendem
prontas
ossos que acabam em patas fofas

são irresumíveis, os cachorros
sempre a mesma espécie, mas
cada exemplar tão único
de formas e tamanhos diferentes
e a personalidade

um é o que eu diria melancólico
outro o que eu diria independente
o ansioso e o egocêntrico
tão diferentes entre si
e da gente

que também é indescritível
imperscrutável inenarrável irresumível
e talvez até mais interessante
quando se busca
nesse espelho
mamífero

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

sonho

sonhei com um cachorro
pequeno no meu colo
sem olhos

um tumor
áspero
crescido

comia-o pelo flanco
cachorrinho errado
chorando

mas olhos surgiam
fechados
em determinado momento

do sonho:
cílios
do nada

indicavam o esforço
do cachorro
de abri-los

mas quando conseguia
sangue era espirrado
pra todos os lados

dois globos escuros
molhados
de lágrima e ferida

brilhavam
e ele
ganindo, esperava

que eu
acordasse
pra morrer

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

a vontade
um pássaro raro
um rato assustado
eu agarro
o nada que ela deixa
e perco a sua imagem
na fuga a vontade
de novo aparece
na minha direção
rápida
ela sempre
foge

e o que sobra
e o que resta
desse escape
dessa praga
é esse movimento
de dedos desejosos
veludo batimento
cardíaco que reveste
me parece
esse pássaro
raro, esse rato
assustado

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

moeda de troca

sabem
os escritores
que são falidos
embora alguns
ganhem milhões
em direitos autorais
prêmios são herdeiros
de famílias milionárias
dilapidam
cada grão
do latifúndio
e secam o pomar
e deixam que o gado morra
de velhice
ou que se restitua ao selvagem
pouco a pouco
bezerro a bezerro
inutilizado
pro abate

muitos
é certo
passam fome
e alguns têm
mais do que precisam
em matéria de
comida
bebida
cadernos moleskine
quem disser
isso não importa
é um canalha

mas não é isso

uns
se matam
outros
escorregam no banheiro
batem a cabeça
e já era
ou têm câncer
passados os cem anos
todos
todos os escritores
invariavelmente
morrem

mas também não é isso

cada palavra
conseguida ao custo
de muito acaso
mesmo quando
é um sucesso
termina
em fracasso

que ofício
falido
esse nosso

não bastasse
não ter salário
morar em casa alugada
e mesmo isso
ser sorte
não bastasse
a conta no banco
que não fecha
tem essa outra
sem números
só letras
reluzindo
no vermelho
mais bonito
tão bonito
que eu jamais
desejaria

que fosse de outro jeito

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

a tempestade

faço
às pressas
um relatório sobre literatura
para um congresso de estudos literários
que se realizava numa cidade litorânea
entre as mais bonitas do planeta
e em nenhum momento fomos para a praia

as ondas revoltas
desenhadas por Hokusai comendo o Fuji
enfeitam minha parede sobre o calendário de outubro
tirando um sarro que o tempo passa
e só a praia é praia
mas mesmo a água
parada
é perigosa

será que estes momentos
burocráticos
curvado de cueca sobre a cama
vão se tornar a concha
em que
um dia
darei à luz
alguma pérola?

espíritos
dos artistas mortos não me deixem
por favor
sucumbir ao peso dos prédios
e das viaturas policiais
as sirenes amaldiçoam
na rodovia mais próxima

que o canto
mudo
maravilhoso
das sereias
me arraste

aonde eu nem sei

se
existe

domingo, 30 de outubro de 2016

the web is over

já disse
sobre o bicho
há muito morto
curtindo
cada post
engraçado
vi uma lesma
devorando
uma minhoca
e o resultado
do sufrágio
carioca
agora chega
facebook
desgraçado
o sonho é sábio
também sendo
aleatório

sábado, 29 de outubro de 2016

memória, práxis

não se faziam círculos de plástico
ou pistolas de bolas de sabão
dessas que agora
um homem vende no semáforo

meu avô cortava galhos verdes
do mamoeiro ou da mamoneira
(não lembro mais qual era)
e dava para a gente soprar fraco
mágica da água com detergente

as bolas saíam mais difícil
mas tão brilhantes e redondas quanto
essas que anunciam o produto no tráfego

meu avô morto há tanto tempo é a prova viva
de que não se vive para ver mais maravilhas
que as maravilhas que se vê em vida

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

a dor nos gânglios me lembra
a professora ensinando que a linfa
é um líquido entre o leitoso e o transparente
correndo paralelo a todo o resto canos próprios

achei linda essa palavra: gânglios
e decorei ela mesmo duvidando
que o meu corpo tivesse algo tão fisicamente
como o que sinto vago e à espreita desde sempre

molhado deus tipo pré-sêmen
sistema de defesa à beira-câncer
verdade ofuscada pelo sangue

alma delicada e fugidia
de herpes e de medo escondida
em dor, indizível, na virilha
Perceber conceber as retas os ciclos
da vida as palavras estáticas
fazem-se convulsas se faz pele

o convulso é a pele do planeta

um cachorro é todos os cachorros vice-versa
x' = x''

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

cantiga de ninar

a chuva o céu
as pilhas de papel
já estavam
e vão continuar

caindo nem que
bem longe daqui
precisem
se refugiar

não tenha, meu bem
medo do futuro
pois algo
sempre há de vir

mole ou duro
tédio ou inseguro
andando e rebolando
para ti

terça-feira, 11 de outubro de 2016

o ânimo
de fazer um tríptico
épico
de longínquas distâncias
cadê

o nome
no mármore
estátua atacada por moleques
queda
de braço da barbárie
bem

o nada
entrave das estrelas
reatores nucleares no infinito
matéria imprevisível
do tempo e do sonho e do
affe

cadê
o ânimo o nome o nada

na trave
dos trinta anos do ultraje
trabalhar um tríptico épico
que transforme tudo em estátua
atacada
por moleques

sábado, 1 de outubro de 2016

não me canso do fim
ele não cansa de mim

se penso em jasmim
ou se como capim
eu não canso do fim

se sofro no rim
prazer ou spleen
o fim não cansa de mim

vivemos assim
tudo de bom
tudo de ruim

não me canso do fim
ele não cansa de mim
os cachorros estão no cio

línguas e demais genitais pra fora enchendo a casa de feromônios

minha amiga diz que sou teimoso porque não assino livros

tento escrever como fazia há dez anos e já não sei

sendo que naquela época já não sabia, escrever

essa ignorância posta em prática

fertilidade à revelia igual o cio dos meus cachorros castrados

continuo sem querer ser escritor

e não conseguindo

mas não se castra o desejo, isso aprendi

aguardo o momento em que a coisa, se fazendo, estará feita

o que eu queria mesmo é estar morta, enquanto isso

o clichê da Clarice tem sentido

o cachorro deita sobre os sacos plásticos

o outro chora porque a cadela se esconde sob a cadeira

quando ele vai embora, ela corre atrás

e lambe ele inteiro

morrer viver

palavras todas palavras poucas

como se escreve eu de pijama na cozinha suja

pesando nas coisas cercado por três cachorros

que agora dormem

como se escreve o horário passando

de ir à terapia falar de mim, que não me interesso

depois passear com medo e o namorado na principal avenida da cidade

e o céu se adensa sobre as nossas cabeças sem nenhum sinal de piedade

escritores que se matam, crentes que se matam

chefes de Estado e animais domésticos e emissão demasiada de carbono

como se escreve

o espírito inúmero difuso dos mortos

aquilo

que ninguém sabe se existe

ou se

não

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

daqui a quatro séculos
o que fica disto ainda
é mistério

se os traços de agrotóxico
Chernobyl e Fukushima
a cura do câncer

carbono catorze
um tempo em que se cria
na expansão do universo

o impeachment da Dilma
petróleo, GPS
quantos analistas políticos serão lembrados

as eleições do próximo domingo decidirão
que temas mais diremos
nos próximos quatro anos

mas não tem
eleição que defina
daqui a quatro séculos

o escritor congratula-se
dizendo que com certeza
lerão Vidas secas

se Shakespeare existe hoje
daqui a quatrocentos anos
quem sabe

as silhuetas de Brasília
e da bossa nova
seremos clássicos?

e o nome de quem
estará preso nas palavras
da língua futura?

trabalhar pra garantir
o esquecimento e a morte
terá recompensa?

e desta tarde gasta
pensando o impensável
vai restar algo?

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

tudo acabou antes que eu chegasse
bem-vindo após o fim, é assim

tem tantos ratos pelas ruas da cidade
interpelo perguntando onde foram
parar as onças capivaras mesmo os gatos
eles respondem de má vontade
sei lá

enquanto isso você tenta fazer algo que preste
assina os contratos do futuro inconteste
os ratos roem o futuro e tudo nele

não é culpa deles
caráter é destino, diz o astrólogo
melancólico eu olho a sujeira do rio que passa
e atravesso a vida a nada

como admiro esses pequenos mamíferos
sem indivíduo sem diploma sem cardápio
estrelas cinzas do chão de suas camadas

fios elétricos dançam presos
no céu da cidade o que existe era previsto
nos bueiros o que vem é sempre o mesmo

eduquemo-nos com aquilo que sobrevive
o entendimento um bicho sujo esperando
a hora certa de sair do esgoto sem ser morto

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

o século vinte foi embora
e deixou com a gente essas palavras
que a gente não sabe o que fazer

se eu digo xô palavras elas
não vão embora se eu digo
venham palavras elas não vêm

a própria noção de orfandade
é bem característica do século vinte
apesar de que não tinha internet

quando eu for contemporâneo
deste século há muito terei
morrido sem ter entendido nada

ó deus pra sempre morto me leve
pra um lugar onde não haja
calendário entendimento nem palavras

às pessoas do depois eu só desejo
melhor sorte ajustada ao seu tempo
certeza vocábulo século
vinte e dois

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

tem dia que é bom
tem dia que é ruim

primeiro um bombom
depois urubu

depois furta-cor
então resta-um

tem dia que é bom
tem dia que é ruim

um fora do tom
um de urucum

um dia marrom
um dia azul

às vezes sem som
às outras sem pum

tem dia que é bom
tem dia que é ruim

tem uns que têm deus
em cima do mundo

e outros ateus
a cada segundo

tem dia pastoso
tem dia felpudo

tem dia que é claro
tem dia que é escuro

tem dia trabalho
e noite com sono

às vezes eu quero
às vezes nem tanto

às vezes consigo
às vezes com canto

um dia eu paro
no outro instigo

tem dia boboca
tem dia amigo

tem dia que esqueço
que é só mais um

tem dia que eu vou
tem dia que eu fui

tem dia que tá
tem dia que intui

tem dia que é bom
tem dia que é ruim

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

as pessoas se matam também no campo
em vilas pacatas, se matam
olhando o mato e o céu
pendurado
no galho de uma árvore
o pescoço fechado
se tudo é lindo

na fronteira
fugindo da guerra
numa quarta-feira
eu entendo

mas com deus ao seu lado
e na conta bancária
em meio  ao banquete
as pessoas se matam

Desdobramentos da história do flautista de Hamelin

1. Os ratos voltaram. Agora a cidade só tem velhos arrependidos, nunca mais nasceu uma criança. Os ratos roem a pele dos moribundos que morrem aos pouquinhos, de hemorragia e de horror. Som de flauta alegre na distância.

2. O flautista continuou de vila em vila. Daqui eu expulso os cachorros: toca a música, com rabos abanando os bichos vão e se jogam no lago e se afogam. Depois que desisti de ganhar dinheiro com o meu talento, só acho graça. Na vila seguinte vou afogar os canhotos. Na outra, os flautistas.

3. Vilões enfurecidos perseguem o flautista, agarram ele. Costuram-lhe os lábios, cortam-lhe a língua, quebram com martelo seus dedos dos pés. Depois amarram quase morto no poste do centro da cidade e deixam o sol e os urubus fazerem o resto. É incrível como, se você fizer do jeito certo, o cadáver não fede. Curiosamente, nenhum rato chega perto.

4. A vila das crianças adolesce e fica adulta. Todos sabem tocar flauta. Uma vez por ano, fazem grande festa pra celebrar a fundação. O povoado cresce, vira um país, agora tem exército e programação televisiva no domingo. Os pequenos vão pra escola com um rato desenhado no broche. Um grande rato de ouro ocupa a praça principal em frente ao palácio do governo.

5. Dizem que nas noites de lua cheia você pode escutar o som da flauta assoprando no vento. Quem segue a melodia, sem querer igual sonâmbulo, acorda num cano de esgoto iluminado pelos reflexos dos raios do luar. Encontra à frente o flautista sentado num trono, crianças e ratos cantam e dançam ao redor. Se você não for rato nem criança, vai desejar morrer afogado antes que o resto aconteça.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

quero me lavar
mas a água é suja
e eu no banho
de saia justa
mais me sujo
que me lavo

tomara que surja
um sabão raro
de efeito mágico
de cheiro certo
que me tire
deste aperto

enquanto isso
eu me visto
de água imunda
e se me sujo
estou mais limpo
do que ela

então a limpo
e que assim seja

domingo, 11 de setembro de 2016

queimar as berinjelas comer elas
com o cu que acabou de se acabar receber
as fezes os amores que se podem fazer

olhar o sol no efeito sobre as coisas
nunca mais cortar as unhas as desculpas
não pedir além do roubo e do foda-se

que estranhas as óbvias vontades
que o nada me queira eu o quero

a vida uma palavra coincida
com algo que se possa dizer dela

domingo, 4 de setembro de 2016

#ForaTemer

(exercício em versinhos depois de ver que o ~governo~ teve a ~brilhante ideia~ de criar a hashtag "bora temer" pra se contrapor ao grito #FORATEMER)

MARQUETEIRO DO ~GOVERNO~:
Basta de temer!
Beabá agora:
biarticular
(bucéfalos, embora)
boas intenções
- e ba be bi bu bora!

 RESPOSTA RAZOÁVEL:
Não é assim, fofa,
feito mera gafe,
que vais fazer o fim
da hora do sifu.
Agora sem abafo
faz-se fé faz-se fiau
fumaça só aflora
- o fa fe fi fu FORA!

sábado, 3 de setembro de 2016

o desejo não coincide com as veias e artérias
sangue pulsando na inundação do dia
comecei a coagular no nascimento
agora essa gosma pouco à vontade

o problema não é você é o capitalismo
e o medo na uretra desde o início
um corpo composto basicamente de água
eu e o planeta, sozinhos no seco


segunda-feira, 29 de agosto de 2016

impeachment

a presidenta do país de que tanto mal falei
eu queria que ela fosse minha amiga de bar
recuso todos os convites por falta de dinheiro
também porque prefiro ficar em casa pensando que preferia não estar vivo
a gente brinda quando esquece dos problemas
todo mundo vai ter câncer por causa de agrotóxico
quem diria este ano de dois mil e dezesseis
vai chegando ao seu final

sem nenhuma pretensão de alcançar
um dia além do trinta e um de dezembro
este ano é que nem eu

depois de tudo
vamos ser uns átomos desorganizados
e um suspiro que a memória

de alguém

solta enquanto pensa
no que gostaria de comer

presidenta quando você descer desse palanque
sabendo ser a única entre milhões de inelegíveis
se o rumo dos corpos tivesse sido outro
a gente brindaria de um jeito bem genérico:
saúde
nada é o bastante
e como se tudo já não bastasse
tudo que basta
é bastante nada

sexta-feira, 26 de agosto de 2016


(Samuel Rawet, "Homossexualismo: sexualidade e valor")

soneto do escritor bem-sucedido em seu jardim

sentado na garagem da casa que eu alugo
com meus dois cachorros sujos
roupas puídas chinelo furado
e um portão corroído de ferrugem

telefonando pra pedir dinheiro emprestado
fervendo água pro mate lavado
os livros empilhados no chão empoeirado
trinta anos e nenhum livro publicado

eu sou um sucesso
na longa linhagem de escritores que triunfam
no fracasso

pego com dedos leves as minhocas que tentam escapar
investigo a origem comum da alma dos animais e das estrelas
delicado e satisfeito devolvo elas pra terra

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

com a coluna esticada em equilíbrio e alegria
e o focinho à procura de aventuras
o cachorro vive sua vida
atormentado só por pulgas

dez palmos de língua pra fora da boca
um acaso que não desiste
o cachorro cumpre sua missão
de mijar em tudo que existe

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

acordo e encontro
de novo o meu corpo
vivo, pedinte
um misto de estômago bexiga e intestinos conflitantes

as abelhas sobrevoam o jardim
o cachorro assovia por atenção

o que estava molhado em mim secou
enquanto você roncava sem eu perceber

cada pessoa é sozinha em seus sonhos e na hora que desperta
por isso os seus olhos escuros me trazem calma

quando eu acordo e encontro
de novo o meu corpo
e o seu, vivo, ao lado

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

o pato bonito

no fundo do mato
do bosque esquisito
um ovo guardava
o pato bonito

a cobra que tinha
o estômago aflito
queria o ovo
igual pirulito

pulando pulando
com um faniquito
quase pisava
no ovo o cabrito

se ele pudesse
o pobre periquito
chocava o ovo
chupando um palmito

e quando nascesse
o pato bonito
ia achar muito feio
por não ser periquito

assustado voava
assustando o cabrito
e a cobra comia
sem querer o palmito

sobrava chocado
no bosque esquisito
o pato, coitado,
sozinho, acredito

mas sobrava contente
de não ser ovo frito
e de agora poder
contemplar o infinito

"o infinito é bonito
no bosque esquisito"
é o que disse, num grito,
o pato bonito.



terça-feira, 9 de agosto de 2016

Monumento à capivara velocista

A capivara vem correndo
oito milhões quinhentos e dezesseis mil
rasos quilômetros quadrados

temos que pegá-la
e implantar um chip nela
pro global positioning system

depois a CIA captura
de helicóptero no meio da selva
e leva pro museu dos bichos extintos

o governo brasileiro
bombardeia o resto dos índios
constrói lindos estádios de soja

orna ao redor com ciclovias
estátuas de bronze de capivaras
e guaranis kaiowás

explode o ouro pra fora do solo
cada habitante do território
tem direito a uma medalha no pescoço

pra se enforcar ou subir no palanque
e depois de tudo findo
amar fogos de artifício

Plaquinha perdida na multidão do estádio

Faz-me rir faz-me chorar
o futuro do país
repousado nunca quis
a esse futuro chegar

Tinha muitos outros planos
e no entanto aqui estamos
macambúzios, modernizados
e de novo condenados - a
rir, chorar, temer, gozar

Triunfo do caipira que acende a pira olímpica

Na piramba o passo para
para a piranga da pira
pero a peroba caipira
para a pira se prepara

pica a ponta da cueca
picaré para a piara
essa pica pura ampara
peão, piá, perereca

agora a pira prolonga
e para o povo o caipira
perambula e prevarica:

seja sua vara poronga,
mera piracanjuvira,
essa pica é pica olímpica!

domingo, 7 de agosto de 2016

ed è subito sera

Cada pessoa está só
sobre o solo terrestre
suspensa num raio de sol
- e a noite desce.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Novas histórias do detetive Cachorro

Eu queria ser escritor e virei escritor. Eu queria ser detetive e virei detetive. Mas eu nunca quis ser cachorro.

.

Virei um escritor que escreve "nunca quis". Tudo bem, não quero ser perfeito. Nunca quis, rs. E um detetive bem medíocre. Quatro casos solucionados por cada dez investigados. Mas a pulga, no entanto, está sempre atrás da orelha.

.

Ela entra no escritório. A fumaça do cigarro sobe do cinzeiro em torvelinhos pelo ar. Tailleur vermelho, chapeuzinho desabado, talvez preso com um grampo. Sou muito perspicaz. Ela me olha confusa. Eu paro de me lamber e digo: pode sentar, neném.

.

Vou anotando no meu bloquinho. Sou um escritor sem medo do "-inho". E um detetive sem memória. Fala mais devagar, neném. Onde? Hm-hm. Calma, respira. Entrego o lenço pra ela. O broto acaricia a minha pata distraída, mas sensualmente, ao pegar o meu lencinho. Seus olhos úmidos me alcançam de uma distância longínqua. É, isso mesmo, "distância longínqua". Mas chega disso, detesto metalinguagem. O broto me devolve o lencinho com um suspiro de alívio e um pedido final. Depois, ajeita o chapeuzinho, a cadeira range ao se aliviar do peso da moça, e a porta range ao deixar passar o perfume doce da gardênia que desaparece corredor afora.

.

Tranco a porta e saio para a rua. Mijo no primeiro poste que vejo enquanto penso: a mãezinha sumida, o armazém abandonado, o perfume de gardênia e essa cidade que fede a urina. Consolo o meu focinho com a pista concedida: a última calcinha usada pela mãe. Olho em volta, trânsito, pessoas apressadas. Esta cidade não é lugar para uma mãezinha se perder.

.

Vou anotando no meu bloquinho as sensações que farejo no caminho. O armazém fica só a três quarteirões do meu escritório. Sinto um cheiro de emboscada. Mas nunca quis estar a salvo. Viver é muito, muito desconfiado.

.

Passo por Dolores, o broto da floricultura. Olá, neném. Dolores sorri, indecifrável como sempre, e deixa à mostra a cornucópia de cores cheirosas que abraça a entrada do estabelecimento. Ah, se Dolores fosse uma cadela, o rabo levantado oferecido ao meu focinho úmido. Aperto a calcinha no bolso do sobretudo e respiro fundo: falta só mais um quarteirão.

.

Os cheiros se confundem a cada passo. Preciso cheirar de novo a calcinha usada da mãezinha sumida. Aqui, nesse pelo crespo entrelaçado à trama de renda, mora uma metáfora poderosa. Queremos o caminho do útero, mas só temos vestígios porcos. Anoto rápido no meu bloquinho, senão esqueço. "Queremos o caminho do útero, mas só temos vestígios porcos..."

.

As imagens de Dolores sorrindo, da cornucópia se abrindo e do chapeuzinho combinando com o tailleur se esvanecem quando vejo o galpão cinza e sinistro incrustado no centro de um quarteirão vazio. Guardo minha caneta bic no bolso do sobretudo e coço a orelha, um tique que tenho quando percebo que um caso vai se solucionar. Corro atrás de um rato que corre entre um bueiro e outro e que se assusta com meus latidos. Ratos, essas metáforas fugidias.

.

O cheiro de gardênia se acentua na entrada dos fundos do armazém abandonado. A calcinha no bolso do sobretudo parece esquentar, na certa reluz no escuro da minha roupa. É um sinal de que a mãezinha está próxima. O lugar me traz lembranças sombrias de um lugar distante, longínquo na memória, do qual não quero me lembrar. O broto do tailleur vermelho de repente me parece muito, muito familiar.

.

De costas para mim, sentada numa cadeira solitária em meio ao vasto galpão sombrio, a silhueta de uma mulher exala o cheiro que eu vinha seguindo há tantos quarteirões. Meu coração parece acelerar mais do que o possível. Um ganido toma forma de grunhido à medida que avanço em direção a ela. Senhora? Senhora?

.

A mãezinha se levanta e olha na minha direção. É a própria moça do tailleur vermelho. Eu reconheço seus pentelhos crespos, porque a moça está nua. Que jogada macabra foi tramada pelo broto? Que papel eu exerci em sua peça de cartas marcadas e misteriosas? Uma gardênia azul brota insolente do meio do jardim de pelos da moça agora sem tailleur, e uma gargalhada preenche o espaço amplo e vazio desse galpão cinza, maldito, erguido sobre esgotos e ratos fétidos, fugidios.

.

Eu nunca quis ser escritor. Nem detetive. Mas fazia tempo que eu queria essa coleira antipulgas que chegou agora pelo correio. A fumaça do cigarro sobe em espirais pelo ar. A distância mais próxima entre dois pontos é uma linha curva, infinitamente torcida sobre si mesma. O broto de tailleur vermelho bate na porta e pergunta se pode entrar. Embaixo dessa saia eu sei que ela está usando a mesma, tortuosa, calcinha. Eu digo: sente-se.
a limpeza

corrói com sabão os poros
cheios de limpeza, que bactérias
restam pra língua

? vontade de mastigar
esses mínimos lixos, mas a boca
chega ao gosto de lavanda
mães míticas de araque
esfregando a merda da fala dos meninos

agora eu vou vingar
cuspe amanhecido
enfiado em cada buraco

esses pixels não sabem
com sua luz de shopping

o esgoto da boca
dos que chupam

terça-feira, 2 de agosto de 2016


"O macaco como pintor"
Jean-Baptiste Siméon Chardin, c. 1740
ficar como os cachorros
feito só de expectativa e paciência
latir para os vizinhos quando eles passam sem aviso
e cagar a céu aberto
uma ruga de esforço entre os olhos

não saber das coisas cotidianas
mais do que o delas cotidiano
- memória plana e sem esforços
o que imagino dos cachorro

Tem passarinhos e gatos na vizinhança
incontáveis ratos nas frestas da cidade
esqueletos de macacos escondidos pelo asfalto

quem, dentre os que existem e os que não,
tem inveja da minha calça furada nos fundilhos de manhã
a enxaqueca que sofre por ser enxaqueca
além de pela dor crônica em algo que chamo de cabeça

será que o universo me olha
bípede, as contas no banco,
um teclado virtual com corretor automático em muitas línguas
e diz quem dera
ficar como os humanos
etc.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

alguém olha as praias no passado

o tempo
que eu tenho
não chega

à margem
outra
do mar

mal chega
à idade
da árvore

grande
o bastante
pra ser feita

barco:
eu morro
antes

sonhando
quais
serão as plantas

pessoas
comidas do outro
continente

pensando
quais
pesadelos

de dor
dirão aos meus netos
quem dera

vocês
não tivessem saído
da praia

aquela
em que seus avós
supuseram

o futuro
não valeu
essa pena

quem dera eu pudesse
nas outras praias
chegar

sem ter
o arrependimento de ter
chegado a esta

encontrar
o sonho
vai ser

o melhor motivo
pra dormir

quarta-feira, 27 de julho de 2016

rádio gagá



eu sentava sozinho
e via a luz
meu único amigo
naquele tempo
e tudo aquilo
que eu supus
vinha de dentro
do rádio

você nos deu
todos os astros
entre guerras sem deus
e batalhas no espaço
você nos fez rir
e nos fez chorar
com você eu sentia
que ia voar

então não se torne
só um ruído
só uma bengala
pra velhos meninos
que não estão
nem aí
nem tem ouvidos
pra ouvir

você viveu
o seu tempo
e ainda vai ter
o seu tempo

rádio

tudo o que há
é rádio gagá
é rádio bubu
é rádio blablá

rádio, e aí?
rádio, eu estou
aqui

nós vemos shows
nós vemos homens
nós vemos vídeos
por horas e horas
e quase não temos
que usar ouvidos
pra ouvir a música
que nós ouvimos

tomara que
você não se vá
que não nos deixe
sem ter o que amar
fique aqui
pra nos entreter
quando a gente não tiver
nada pra ver

você viveu
o seu tempo
e ainda vai ter
o seu tempo

rádio

cosmofonia

agradeço
a existência
de palavras

usadas
pelo avesso
raras

para dar
à tarde
de quarta

um sonho
quântico
um canto

mudo
de matéria
negra

astrofísica
música
metáfora

nós
e os buracos
cósmicos

mecanismos
que engolem
e expelem

tudo

segunda-feira, 18 de julho de 2016

mapa do multiverso


na fronteira
do conhecido

sobe
um abismo
inescalável

membrana
de meleca
uma bolha

se veem
através dela
borboletas

carnívoras
de carne
inexistente

aguardam
o primeiro
que se atreva

depois delas
outras bolhas
de meleca

quicam
umas nas outras
e flutuam

sempre
que se chocam
essas bolhas

matam
inumeráveis
borboletas

e se sujam
da meleca
da outra

bolha
de meleca
marmórea

a fronteira
assim
se mistura

à fronteira
que não
era sua

as borboletas
carnívoras
famintas

assistem
um universo
sem fronteiras

domingo, 17 de julho de 2016

hétero pero no mucho

1

que duro
é o teu pinto duro
quando se cura
dessa secura


2

no meio
da mãe dos teus filhos
aquele cheiro
de macho sabido

se chega bem perto
é quase possível
ouvir o gemido
do macho desperto

aí a tua língua
mergulha nela
nadando no nó
entre macho e donzela


3

cangote
um convescote

os pelos confundem
mais que os da bunda

pessoa é pessoa
doa a quem doa

pode entrar
ninguém vai notar


4

macho
discreto
fora do meio

deseja no meio
ereto
facho

acho
incerto
tanto receio

venha a que veio
direto
embaixo

sábado, 16 de julho de 2016

rondó dedado

gato se acaso
vc tem um alaúde
e por isso os dedos fortes
mais que todo transeunte
que um dia me dedou
devagar ou mesmo rude
pode vir pro meu local
vem depressa, não me ilude
não me importa a sua cara
tanto faz, não me confunde
peso altura ou piroca
nem precisa mandar nude
o duro pulso do acaso vai dando lugar
pro músculo mole e macio - nem por isso

não quero querê-lo - pelo contrário -
encontro o que quero no sono entre as pernas

almofada - mucosa - convite de pérolas -
fluindo da flor - fechada - em caralho

- aberta - ela treme - em chão movediço -
e em contato - comigo - poliniza - o lugar
tudo o que sabíamos estava equivocado eis que agora
o que sabemos se alevanta um novo valor mais alto
eis que este tampouco nos importa e mais agora
antes que termine esta frase outro saber surge imponente
e tudo o que sabemos se descarta novo movimento

edifícios do saber vão se erigindo
desabam mal atingem a altura que parecia impossível
seus destroços caem em forma de novo prédio
um cachorro assiste a tudo a distância
se espanta por um tempo depois dorme e sonha
com afagos gatos fugindo coisas gostosas

sexta-feira, 15 de julho de 2016

vejo na tela do computador um vídeo de alguém que viu
uma baleia emergir devagar do mar azul
a luz do sol atinge até trinta metros de profundidade
abaixo o que a baleia vê e vai ficando
uma noite que não conhece o seco

crateras e rochas nas profundezas abissais
bichos desconhecidos o centro do planeta
se esfriando do outro lado um japonês pode estar vendo
o mesmo vídeo dessa mesma baleia

e olha em volta
a cozinha com louça suja de comida japonesa
uma vontade reprimida
de ir no banheiro ainda não agora

vontade de ser esses bichos que se bastam
nos seus ambientes matam e morrem
sem esperar que aconteça
nada além do óbvio

segunda-feira, 11 de julho de 2016

diário de quando tudo já virou diário

a poeta morta de trinta anos atrás previu tudo o que estes últimos trinta anos seriam

calhou de eu viver nesse tempo e agora tenho a idade que ela tinha quando se matou

e pela primeira vez em trinta anos as janelas não me atraem

que farei

com estes dedos esta tendinite este talento todo jogado pelo ralo

da psicanálise e do desejo assalariado

intenção de concatenações lógicas que farei sem deus meu deus sem morte

sem a finalidade inovadora dos blogues

perdido o bonde da geração penso ufa dessa me safei

agora ando no acostamento pensando tomara que quando eu chegar em casa

haja casa

destroços de parede pisoteados por renascidos dinossauros

e ovos que estalem emocionados manhã sentido da vida

seja tudo uma janela

domingo, 10 de julho de 2016

é tipo tocar piano mas uma hora vc toca e o som sai desafinado

vc pensa merda de piano mas não é culpa do piano vai ver e ta tudo certo com ele

é o seu dedo mas como é possível até dois minutos atrás eu tocava lindo saía tudo

lindo, sonata noturno sei lá que porra eu não toco piano

aí vc fica tocando triste feio pensando que bosta o piano a minha vida nunca mais vou produzir música melhor é morrer logo

aí se vc não morre continua tocando até que uma hora de repente AH! saiu uma sonata um concerto o caralho

aí vc fica feliz e pensa ufa e pensa yeah e toca toca toca

é tipo isso só que não tão fácil quanto parece

quinta-feira, 7 de julho de 2016

o tecido social

quem sou eu pra ficar costurando buracos?

estudar o surgimento dos estudos demográficos etc.

o presidente do brasil é um homem acovardado dentro do próprio terno

hordas de bárbaros fogem rumo ao passado

uma capa vermelha e um voo pra parar o movimento do planeta

e no entanto sem tudo isso eu lá teria esses livros que gosto tanto?

wi-fi paredes três cachorros sujando meu quintal

um quintal

sou um homem acovardado dentro do terno do presidente do brasil

os fantasmas das serpentes extintas se enrolam com raiva muda no meu perispírito

o universo é uma paca semiviva sendo deglutida

na primeira extremidade de uma jiboia grande, imperscrutável

segunda-feira, 4 de julho de 2016

tudo o que se escreve
o que se canta o que se dança não adianta

onze mil pessoas
marcharam em toronto
três milhões e meio
pelas ruas de são paulo

se somos
dez por cento
de sete bilhões
no planeta
faça as contas:
não tem
regra de três
que te traga de volta

nem pronome
oblíquo átono
que sustente
tanto nome à revelia
em certidão de óbito

textos de luto
poemas fúnebres
foda-se

gritar
não esqueceremos
de vela na mão
nós esquecemos

pesquisadoras da mesma universidade em que você foi morto
encontraram oitenta e seis bilhões de neurônios no cérebro humano

bem menos
que os cem bilhões
que acreditávamos ter

tivéssemos
trilhões ou mais, talvez
soubéssemos dos assassinos
até a preferência
do almoço da família um dia antes
de abaixar as suas calças, de te dar
de bruços, de graça, pra noite, pra sempre

mães de todos os continentes choram filhos mortos
saturno mastiga a gente antes do futebol de sábado
no sábado encontrarei amigos e seu nome passará

entre uma mordida e outra
a língua desvia-se dos dentes

ninguém te soletra no entretempo

estatísticas tecem a rede que prende
o anjo que olha as ruínas do foda-se
outras letras com seus nomes vão morrendo
que nem os neurônios

com o tempo

eles não se regeneram

temporada de caça sempre aberta

no escuro os viados se encontram nos campos

pululam a última da lady gaga

e quando se tocam a luz que sai do corpo

deixa a gente exposta acende várias lâmpadas

o nome disso tudo não tem nome

chama sinapse fluorescência

diego vieira machado

etc.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

autorretrato

Recebo do mundo oxigênio e seus venenos
a herança está estilhaçada em todas as partes
há cinquenta anos eu nem era nascido e recebemos as primeiras fotos do planeta vindas lá de fora
essa esfera azul marmórea vai se distanciando a cada dia que passa
não sei se fico mais sozinho ou acompanhado quando acompanho esse movimento
bebo leite que muito provavelmente tem coágulos de pus de vaca oculta em matadouro
vou vivendo esquecido de que também sou um mamífero

mas gostaria de dar tetas fartas e ninhos pra todas as crianças que dormem nas ruas
pobre daquele que se esquece que existem crianças dormindo nas ruas

nosso autorretrato na sonda Voyager 1 no ano arbitrário de mil novecentos e noventa
o chamamos de pálido ponto azul
é nossa esperança
e Carl Sagan já disse melhor do que direi
que tudo tudo tudo que existe e existiu está ali, aqui
neste grão de pó suspenso num raio de sol

devolvo ao mundo gás carbônico, fezes, urina
e a insistência na lembrança dessa cor longínqua:
o azul

segunda-feira, 27 de junho de 2016

a estrela

o essencial é invisível aos olhos

um feixe de luz entra pela minha janela transformando o ar

esmegma de monóxido de carbono que sufoca são paulo

em anel de saturno, só que reto e finito

que bonito

os ácaros voam agarrados a pedaçúnculos de pele morta

atravessados, como eu, pelos neutrinos exteriores à galáxia

são leves no furo do poço que o planeta imprime no espaço-tempo

somos elásticos por causa das ondas de gravidade que banham a gente

mundo incansável

eu resultado da sua equação existo pra compartilhar tudo isso

e perpetuar e trazer tédio e destruição pro universo como um todo

cada coisa tem sua razão de ser

pode ser loucura

pode ser não ser

obrigado, espírito de deus concebido pelos meus antepassados

neste começo de tarde de pés frios vivendo no inverno do trópico de capricórnio

aceito as paredes da casa alugada e os raios cancerígenos da torre de celular aqui do lado

céu escuro iluminado

bem-vindo, dia igual aos outros

sexta-feira, 24 de junho de 2016

refazer as palavras pegue tudo o que se construiu até agora
templos de deuses poderosos esquecidos de idiomas mortos
a delegacia de polícia está ali na esquina esperando o seu corpo de carne
tijolos garrafas plásticas adobe pegue todos os materiais possíveis

fazer edifícios de palha
improváveis torres trinta andares qualquer brisa derruba elas nem chegam a ficar prontas
palavras são palha
palavras são osso

reciclagem infinita, escavações curiosas do passado, tralhas que acumulam

um atropelo de abrigos e de absurdos nada dura
pra sempre olhar em volta / encher pulmões / se erguer do chão

quarta-feira, 22 de junho de 2016

elegia

posso pensar átomos tocados pela língua
e rotações desta Rocha imaginária

em torno do próprio eixo, posso pensar
suas pernas abertas uma porta, entrar por elas
na casa exposta às tempestades do Tempo

nossos sonhos destelhando-se e nos deixando
sem o abrigo do látex e da potência

uma guerra entre vírus e Gulliver
amarrado entre tochas e o tempero do churrasco

nós dois separados e entre nós outros tantos átomos
que por acaso não formaram esta língua que eu passo
nos dentes trincados na gengiva que sangra

ó Big Bang Misterioso Acaso Deus Criador
Começo Inalcançável e Múltiplos Fins Imaginados

os físicos perscrutam vocês nas frestas do conhecimento

e enchem minha cabeça de mitos que remetem a mim mesmo

enquanto a língua áspera e as hemorroidas insistem cuidados médicos

e a Morte sussurra à porta sem pressa testando as chaves

encontrar uma pista de pouso entre as cordilheiras fechadas do Dia

suas pernas abertas sem átomos ou medo ou movimentos planetários

eu rezo pra que as feridas nunca nasçam na sua pele com cheiro de gente viva

a batalha é uma dança dói ela só termina quando for vencida
os meus cachorros devem me ver escrever
que nem os latidos pro nada a corrida sem sentido dos gatos
minhocas que querem escapar da composteira apesar de estarem no ambiente certo e com bastante comida

me pergunto se esse urubu voando em círculos sobre a nossa cabeça tem algum sucesso na sua busca
se aquele gambá que vi na beira de estrada no ano passado subido na árvore
tinha filhos e desejo de vê-los vivos

nessa curta vida devo ter escrito mais palavras do que a atual população de gambás do planeta
se amarrassem elas nos rabos dos bichos que incômodo seria se moverem

convivo com prazer incomodado entre os animais que sobreviveram à minha presença
e escrevo sem saber de mim mais do que sei dos meus companheiros
do mesmo jeito que observo meus cachorros latindo para o nada
e a corrida sem sentido dos gatos
cada vez menos dias pela frente
e mais cachorros em volta

o dia é uma ilusão de ótica / sem rabo pra abanar
os corpos dos cachorros vão se acumulando em estradas jardins terrenos baldios

é um chão canino / recheado de ossinhos
preso no buraco da gravidade

ele late quando é noite em cada canto do mundo existe a noite
barriga pra cima pra todo mundo pisar em cima

e a barriga é a parte mais frágil do corpo animal
exposta sem estrutura óssea minha nossa senhora rogai

pela grande barriga celestial os bichos deslizam
o Tempo te faz carícia

segunda-feira, 20 de junho de 2016

tudo se equilibra
no tênue fio da vida

e caminha inconstante
entre o depois e o antes

até que cai, num susto,
diante dos olhos do público

mas não se espatifa no chão
(a morte é uma tela de proteção)

sábado, 18 de junho de 2016

fiações, fusíveis, parafusos

Trança humana

A arte é uma rede de comunicações no tempo.
Há subestações de alta potência:
Homero, Dante, Shakespeare, Bach, Goya...
E há fiações, fusíveis, parafusos, isolantes,
Singelos e imprescindíveis.

(Paulo Mendes Campos)

sexta-feira, 17 de junho de 2016

a força

No centro da margem da superfície do planeta

ninguém se interessa pelas coisas que eu escrevo além de dois ou três amigos

a conta bancária evidencia o destino do poeta

e a poesia é uma prova de fogo no inverno das mudanças climáticas

palavras são usadas há milhares de anos pela espécie

dos pixels rupestres não sobrou sequer a marca-d'água

botas pisando nos rostos o banco de dados das íris

bombas de choro o comício intenso estratégias políticas

eu produzo sintaxes sem muita novidade os textos se anunciam

arautos do já era uma vida de espera e contundência

meus nomes rasurados das capas do livro de Deus morto

e morto vigiarei as conquistas dos séculos vindouros

de alma trancafiada na historicidade do corpo incomodado

receba os malabares de versos incapazes de cavar vulcões

a lava invisível lavará a vossa incompetência

com bilhões trilhões neutrinos atravessam os corpos sólidos chocando-se no Acaso

o vácuo é teu destino Universo completo de matéria escura

venham a mim os miseráveis somos todos de vontade de ser um Todo

suplantado pelo novo feito mofo repousa sobre a pedra

gratidão por estes átomos e desgosto pelo esmalte do dente rachado

a Terra é ouro cansaço e força e projeção de Finitude

ponto pálido que anula o abismo e a altitude

recolhem-se as Crianças atentas ao que não tem Forma

e formam um tecido uma atração outra ciranda



meu trabalho é desaparecer assim que for possível

deixar pegadas que confundam o caminho do Impossível

domingo, 12 de junho de 2016

inverno paulista

As marcas de suor no lençol
fino cobrindo o seu colchão
no chão são ainda mais finas

os pelos espalhados na sua perna
também não servem pra te proteger
do frio que vem

quando o planeta dá seus giros
e confirma a mesma sina talvez
um cataclismo ambiental nos mobilize

acumulados uns nos outros
a gente se acolha e se ampare
de um jeito primeira vez experimentado

menino uma incógnita
esse futuro junto e esse presente
isolado

terça-feira, 7 de junho de 2016

a fila

conheci todos os meninos do planeta

eles faziam fila pra passar na minha frente

a gente flertava mas nenhum deles ficava

perto só uma pedra e eu sentado

um cachorro me fazia companhia

rosnando cada vez que eu me mexia

para olhar mais de perto os meninos

óculos mostram rugas ocultas

nos rostos eles vão envelhecendo

e nos pelos cotovelos nos mamilos

mas que fila, não acaba, nunca

segunda-feira, 6 de junho de 2016

sumário brasileiro

País com nome de madeira e dinheiro

Cor, temperatura e esperança de futuro

As fronteiras são erosões bem calculadas

É impossível te conhecer com os pés

Com a boca, então, nem se fala

Uma gonorreia adormecida em cada família

Os estupros te povoam e engrandecem

Nunca antes se disse tanto em língua portuguesa

E golpes de estados que mudam tudo continua o mesmo

Desertos povoados de flores brutas improváveis

Um quilômetro quadrado com a maior biodiversidade do planeta

Muros torturas meninos de rua declamam poemas

Fardas e firulas e forrós nulos caixa de som da madrugada

Dez entre dez terroristas e traficantes preferem teu passaporte

Um abismo de vantagens se abre à nossa frente

Não tem nada que não se pague com o riso e o crediário

Pátria do apesar

Um tsunami de açúcar ameaça afundar a ilha

Bocas abertas te esperam

Corações cariados te esperam

os bichos, a gente e a morte

os animais sabem a morte o tempo todo

a gente pensa que é exclusividade nossa, bobagem

a gatinha parada no braço do sofá se repete

"tudo que eu vejo terá um fim", e o cachorro

quando descansa das brincadeiras

se diz "bom, acho que não morri ainda"

os pardais enquanto voam

desejam

que a morte venha depressa

"e que eu não sinta a queda"

ser humano, se desfaça

das suas ilusões de finitude

viver a morte

não é teu privilégio

segunda-feira, 30 de maio de 2016

a burrice

"Pergunta: A burrice é um mal incurável?

Clarice: É sim, mas pode-se atingir a inteligência da pessoa burra através do coração."

os vivos e os mortos

os vivos se encontram só por acaso

ricocheteiam nas paredes do que não acontece e eventualmente se trombam

os mortos circulam com mais malemolência

salpicam sua não existência em cima de nós que estamos vivos

nem percebemos que estamos cobertos de mortos

cercados por eles, fincados no seu chão

que é um chão móvel e gasoso

como uma nuvem

a biblioteca sem átomos

eu tenho na cabeça uma biblioteca de livros que só existem na minha cabeça e não vão encontrar nunca a prateleira de uma biblioteca concreta

nem sempre escritos por mim. alguns são de amigas e amigos. de gente morta e desconhecida. sou um editor prolífico

quando estou triste ou sem ter o que fazer, vou na biblioteca pra passear. fazia isso quando era adolescente e foi assim que descobri muita coisa. às vezes a biblioteca é a da minha cabeça

folheio as páginas inexistentes e volto de lá com mais fôlego

quando eu morrer, toda essa biblioteca vai desmoronar, transformar-se numa bola de fogo frio e invisível, não vai sobrar um átomo dela cuja história possa ser rastreada

é possível que alguém que leia estas linhas, então, me transforme em autor ou biografado ou editor de algum ou de alguns dos muitos livros que nunca sairão da biblioteca da sua própria cabeça

os livros têm uma vida que vai além da gente e a nossa vida vai além por causa deles

eles têm um jeito muito próprio de circular

quinta-feira, 26 de maio de 2016

os grandes mamíferos

uma confluência de químicos nativos da minha boca

me faz perceber a aspereza da língua a gengiva sangra

tenho medo dos cânceres escondidos a cada manhã

e de ser tão mau poeta quanto o presidente do Brasil

mas o medo não determina as minhas mordidas

atravesso as avenidas da cidade num ônibus que mal posso pagar

sobre rios fedidos da merda humana industrial dois mil e dezesseis

encontro amigos que limparão minhas feridas se o sarcoma me comer

nunca contei os dentes da minha boca e nem preciso

não conto os anos os dias são todos futuros

a vida se prende à jugular do passado estraçalha seu corpo gazela

frágil pulando nos prados o futuro é carnívoro

e os versos testemunham a cena são grandes mamíferos

terça-feira, 24 de maio de 2016

a vida é pouco o tempo o que dura
a cartilagem da rótula do joelho cuja pele
você lambe esquecido do quão é breve
a língua dura mais que a ossatura

domingo, 22 de maio de 2016

encontro
as gengivas presas aos dentes

as tendinites doem
em lembrança do corpo sem gozo

esse acúmulo
de átomos que juntos não importam mais átomos

seus espaços vazios se tornam
líquidos, artérias, presságios

encontro
indesejado

segunda-feira, 16 de maio de 2016

o dia e a noite se seguem
e nunca se alcançam

os nossos avós acreditavam que a noite assassinava o dia todo fim de tarde e reinava tranquila até que o dia voltava à vida e a assassinava e assim sucessivamente

hoje a gente sabe que a morte e a violência são especificidades cósmicas nossas o espírito de  Deus paira sobre a camada de ozônio e a luz corre mais do que qualquer outra coisa

mesmo assim o dia e a noite se seguem
e nunca se alcançam

domingo, 8 de maio de 2016

dia das mães

A gente tem essa dor de ter nascido

entre cortes e fezes e gritos

extraídxs de dentro uns das outras

rompem-se as cordas da unidade e o próximo

menos que um século será gasto

só e tentando reatar em nó

a mucosa da memória de um conforto

ainda antes eu um ovo

sem pinto

paciente

célula caudada descartável na bolsa

apêndice do homem minha origem

e antes

espirais de proteína emaranham-se no tempo

quando a primeira molécula mão de Deus

começou esse caminho acidentado em direção

a este um metro e oitenta e quatro de futuro esqueleto seco

das mucosas e melecas das metades abortadas

maternas

os fios atados não se tocam o que nos une

é só o espaço sem tempo

entre a gente.

terça-feira, 26 de abril de 2016

o ouvido aberto a todo som e o senso

fresco não saber medir o peso os paus

dos homens pelados das revistas e à noite

voltar a sentir medo de si mesmo futuro

pode ser esquizofrênico que me importa

eu tenho todas as chances

perdidas por receio de que dê certo que

me importa a volta aos dezessete estala

no primeiro acorde do New Order

e o ciático e o estômago e a próstata

gasta um respiro que acomoda

o corpo ao todo o todo ao tempo

tudo que adolesce o tempo todo

segunda-feira, 25 de abril de 2016

fugir dos fatos dos atos dos tropeços e trapaças

dos dias esconder-se das mensagens dos chamados e dos olhos da família

me trouxe a esta savana ameaçada e minúscula a minha cama

onde manadas de antílopes saltitam enquanto fogem da fome dos felinos

entre o escuro da postura planetária e o amarelo das paredes desta casa alugada

na secura do quadrilátero abarrotado do meio do continente sul-americano

que aniquilada a floresta amazônica vai deixar de irrigar então de fato uma savana

recupero o sumo selvagem a saliva da caça e amanhã recomeço a perder eles

domingo, 17 de abril de 2016

feliz é a nação

E estando reunidos os homens do povo na casa que lhes dava nome, tratavam com pombos e asnos aos gritos vendendo-os entre uns e outros enquanto invocavam o nome do Senhor;

e eis que o Senhor vendo aquilo chamou Seu anjo e lhe disse: desce ao meio dos homens a anuncia a eles a minha chegada,

pois que chamaram o Senhor, e o Senhor atenderá. Eu sou o Deus de Jacó, Senhor dos Exércitos, a Paz de Jerusalém.

E descendo o anjo entre os homens, soou a vuvuzela anunciando Regozijai-vos, ó justos, pois o Senhor ouviu os vossos clamores, e sendo vós retos, Ele estará entre vós.

E disse o anjo: Tema toda terra ao Senhor; temam-no todos os moradores do mundo.

Ouvindo o anúncio do anjo, os homens se regozijaram, e houve grande festa entre eles.

E cortaram os testículos dos asnos para banhar-se com seu sangue, pois diziam O Senhor é bom, ele estará entre nós.

E aos pombos os homens deceparam com seus dentes, e violentaram as mulheres do povo, pois diziam Eis que tememos ao Senhor, e somos retos, e os olhos do Senhor estão sobre nós;

não restará entre nós pecador ou mulher do povo para que a ira do Senhor não se abata sobre nossa casa.

E seviciaram-se entre si, cortando-se de morte com lâminas e dentes, a eles e a suas mulheres, e a todos os pecadores da nação, até que sobraram apenas os justos. E desfizeram o conselho dos gentios, e cantavam com o saltério e um instrumento de dez cordas, louvando o nome do Senhor.

E os ímpios foram varridos da nação, pois a ira de Deus se abateu sobre eles, e suas mulheres foram feridas de morte e morreram.

Vendo aquilo, o Senhor se alegrou, e disse ao anjo Vai lá, toca a vuvuzela e anuncia o que te digo:

Eu sou o Senhor, Deus dos Exércitos, que livrou Seu povo do Egito, vosso auxílio, espada e escudo.

Feliz é a nação cujo Deus é o Senhor, e o povo ao qual escolheu para sua herança. Não esperai mais. Pois eis que vós sois justos, e Eu sou justo.

Em verdade vos digo: vós sois o Senhor.

Ouvindo isso, os homens se regozijaram. E houve grande festa entre eles.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

no fim
das contas
o que se escreve só interessa mesmo
a quem escreve e depois
por um acaso
muito imprevisível
ou talvez nem tanto
porque tem vestibulares e outras instituições
que direcionam os textos e os destinatários
a um mesmo destino

mas mesmo assim
é um acaso o que dita
que eu tenha me emocionado
com a morte do cachorro retirante
aos dezessete anos
e não com o casamento de fachada
no romance do Alencar
como a minha amiga Tayce

é que o que se escreve
no fim
das contas
só interessa mesmo
a quem escreve
e por acaso
só mesmo por um acaso
bem casual
a alguém que leia
mesmo que seja décadas
ou séculos
depois

então eu numa noite de insônia
posso ficar tranquilo
entre sílabas
estou muito bem acompanhado
pelo fantasma incerto
de um leitor desconhecido

eu
que me interesso a mim, de repente
também
interesso a ele

o mundo tem hoje mais de sete bilhões de pessoas

o texto
teso
une o telefone de latinhas
de achocolatado
que eu entrego a essa pessoa
num escuro sem tato

por aqui
a gente se fala
eu não escuto
a não ser
o eco
da minha letra

a recompensa que temos
olha só, que engraçado:

eu, me sentir Deus
que deve estar assim
lá na Eternidade
insone balbuciando numa lata
de achocolatado

você, saber que Deus
existe, nem que seja
assim torto, um Deus
talvez já morto, é muito mais
do que muita gente
jamais
vai encontrar

segunda-feira, 11 de abril de 2016

quando morre uma
escritora um escritor
os anjos cochicham ih
lá vem mais uma mais
um, esses chegam cheios
de pompa e timidez perguntam
por deus e onde está a máquina
de escrever primordial os anjos
não aguentam mais ter que dizer
minha senhora meu senhor
aqui não tem nada dessas coisas nós sabemos
depois de tantos anos encharcando
papéis de tinta os dedos duros de tanto
digitar você se sente é
lógico
muito decepcionado decepcionada mas
entenda ninguém
nunca
jamais
te prometeu absolutamente nada e enquanto
na terra as editoras preparam
orelhas elogiosas e os jornalistas copiam
com esmero o press release
com dois comandos de teclado
a escritora o escritor ressuscitados
em fotos e suspiros e deus nos livre até
saraus pelos séculos e os séculos dos séculos
sussurram
poemas sem vida nos trabalhos de mesa espírita é que no céu
o monopólio das palavras está nas asas
dos anjinhos quando morre
uma escritora um escritor percebe
finalmente que as palavras
ruflam
míticas místicas abstratas
e não há deus nem nunca houve
uma máquina
de escrever
primordial

segunda-feira, 28 de março de 2016

contei nos dedos das mãos repetidos os homens
todos os homens que eu já beijei e só esses
são poucos comparados com todos os outros que eu já

esses lábios que você vê de película rosada
têm mais calos que a curva do dedão em contato
com a sola gasta do único par de tênis que ainda tenho

hoje é o dia
dos amores confessados, em verso
fácil e enjambement
malandrão

uma vida de beijos e palavras
à procura da delícia

que aparece em cada esquina em cada olhada
mas some tão depressa que parece nunca ter
existido

com sono e na trincheira de um colchão
cercado por bens baratos comprados com oito horas
diárias de trabalho
assalariado

masco pedaços do meu corpo soltos da pele dos dedos
ao rés da unha enquanto penso
uma rota de fuga um começo de incêndio

um navio naufragado
cometer homicídio
trinta anos de idade

chupar o calo dos beijos

sexta-feira, 25 de março de 2016

a paixão
é este martírio: coração
açoitado nos caminhos
entre o útero inocente da tua mãe
e a cruz do teu último suspiro

sexta-feira
companhia selvagem de naufragado
às vésperas de uma espera
por resgate e por acaso
promessa de sábado

dois mil anos depois
da sua morte sem registro e do seu corpo
aos céus sequestrado
quem diria
que te estaríamos repetindo
metaforicamente
num feriado

terça-feira, 15 de março de 2016

o poeta rejeitado

Pela transparência da camisa puída
o elástico desfiado da cueca demonstra
o que a bengala já dizia ao te deixar
cair sentado entre as cadeiras do auditório

a voz barítona e sem ritmo então
termina de te anunciar pra todo mundo
como o poeta que o editor homenageado
rejeitou publicar por não ter qualidade

justo ele, que publicava tanta gente
inclusive os que no palco honram sua morte
(um fala de si mesmo em terceira pessoa

a obra completa do outro não diz nada).
Você sorri contando causos de que lembra
louva a amizade e lamenta não ser poeta.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Não tenho apego
a nenhum dos meus poemas
quem quiser que pegue eles
e refaça
como achar melhor

palavras recompostas
outras quebras de versos
ou ideias
deformadas
destruídas o que for

não tenho apego ao meu nome
ao meu corpo tenho pouco
nada basta ao texto
e eu não quero ter apego

que nem Deus
depois de descansar
passa os séculos fingindo

não ter
nada a ver
com Isto.
Toda noite
me visita
em hálito

rente
ao rosto
quase não percebo

a Morte
seu hábito

de me cobrir
e assim que
volta o sol

escapa
eu de novo
tenho frio

quarta-feira, 2 de março de 2016

Se a manta do tempo
fosse de repente retirada
os planetas soltos
sem compromisso uns com os outros

Deus
é a nossa manta
que falta

Um planeta com frio
no vácuo sem Newton
sem Einstein perdido
de errante destino

Futuro, ó força
centrípeta ignota
vazio que canta
ralo aberto do tempo

Relento
nos cobre
do fim que adianta
Tua manta

terça-feira, 1 de março de 2016

Você pula entre as folhas podadas

Tigre bobo do conjunto residencial

Séculos concluídos de comodidade evolutiva

Sobre quatro patinhas quase sem peso

Filhote de gato

Desbravando a selva

da Vida

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

"(...) dentro de si mesmo como um passarinho sem asas."

(Leonardo Fróes, "Um cachorro de água e os sentimentos atômicos")
que gosto
têm os cachorros
se mordendo e rosnando no chão da cozinha
aos meus pés
curtindo a companhia

dos meus pés e deles
mesmos e de mim

estar junto
que delícia

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Os dentes de Deus

Separo dois pratos

um com a parte da fruta podre
batida e mofada, pronta pra ser descartada
e outro com a manga brilhante,
firme, amarela e doce,
pronta pra ser consumida

Assim Deus, descendo dos céus
vai separar as pessoas entre aquelas
que serão tragadas pela terra
e pelos microrganismos que vivem nela
e as sem estrago nem prejuízo
à saúde e ao paladar
vão ser trituradas pelos dentes de Deus
digeridas por Sua santa saliva e doze horas
depois depositadas na base
da Árvore da Vida
em forma de fezes
divinas

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Diante de Deus

Frágil
pequeno
mortal

igual um poodle
com raiva
que late pra uma tempestade

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

O peixe que nomeia
a minha cidade
nunca foi visto

pelas professoras que o traduziam
de ouvido
como peixe sem nome
de um rio abstrato

jundiá
se dizia
era uma espécie de bagre
abundante no í
qualquer água
que corre em qualquer língua
tupi

extinto
do rol das espécies esse peixe
nada solto
em cadernos escolares de crianças
elas mesmas um bagre preso
em números de registro e nomes próprios
daqui a pouco

em corpos inteligíveis
e traços de pertencimento de classe
todas as crianças dessa cidade
americana na linha do trópico de Capricórnio
levam o esquecimento desse peixe
e da língua desconhecida que o nomeia
em português na memória ou na carteira
de identidade que será usada

um dia
para o aquário da lei antiterrorismo
sob os olhares famintos da família
e dos colegas que em outros tempos matariam
todos os índios
e os peixes de um rio canalizado
vamos viver e destruir
que dos inimigos sobre só
a casca
de uma palavra

os espíritos dos peixes se acumulam
em cardume sobre as secas do sossego

e as crianças soletram o nome deles
no movimento rápido dos olhos

quando sonham
que voam

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

o imperador do nada

Com cem cachorros ao redor

Atentos ao espaço entre as coisas

Indefeso se levanta

O Imperador do Nada

Dois

Pés sustentam todos

Os que detêm a Posse

Dos nomes dos cem cachorros

Soltos apegados

Dê suas ordens pois

O Nada vai

Obedecer

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

o lado escuro da vida

dentro das páginas
dos livros guardados
é sempre noite

*

se você pega e abre
aleatório o primeiro que o dedo alcança
a noite escapa e te morde

*

é uma noite luminosa
como o sonho que eu tenho
de morrer em nova york

*

é uma noite luminosa
como os sonhos que eu tenho
parece que passei a noite em claro

*

de tanto tomar
antirretroviral
estou vivo e sempre
acordado

*

às vezes o livro
não te dá
nada

*

às vezes
o escuro está dentro
de você

*

como se você fosse
o espaço entre as páginas
de um livro guardado

*

alguém vem e te abre
e o seu escuro
escapa

*

e passa
o resto do tempo
tentando morder

*

que noite
luminosa
é a vida!

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

um minuto para o fim do mundo

na TV, acabaram de avisar
FALTA UM MINUTO PARA O MUNDO ACABAR

minha mãe levou um susto
deu um pulo do sofá
bateu a cabeça no teto
caiu de pernas pro ar
depois levantou aos berros
e foi correndo pro banheiro

pisou no rabo do gato
que gritou um grande miado
saltou pela janela
e saiu em disparada
provocando um acidente
bem na frente da minha casa

os motoristas dos dois carros
nem notaram o acidente
tinham ouvido pelo rádio
a notícia do mundo acabando
então saíram correndo
e quem viu isso achou boa
a ideia e fez o mesmo

fui pra janela procurar o gato
e vi aquela confusão
motorista abraçando poste
cachorro na contramão
careca arrancando os cabelos
e o meu gato, atordoado,
fugindo de medo de um rato

o sorveteiro, desesperado,
meteu a cara no sorvete
o carteiro, ensandecido,
rasgava as cartas da gente
o pipoqueiro, amalucado,
jogava as pipocas pro alto
e o meu gato, coitadinho,
grudou na canela do vizinho

uma freira levantou a saia
e molhou a bunda na poça
depois caiu na gargalhada
jogando meleca na moça
que sentada, entristecida,
pensava no sentido da vida
e o meu gato, já cansado,
veio ficar do meu lado

então eu voltei pro sofá
pensando na confusão
como todo mundo gritava
aumentei o volume da televisão
minha mãe corria pela casa
indo de um lado para o outro
e o meu gato, adormecido
ficou no meu colo ronronando

então a TV avisou
UMA NOTÍCIA DE ÚLTIMO MINUTO
ACABARAM DE ANUNCIAR
NÃO VAI MAIS TER FIM DO MUNDO
CONTINUE ASSISTINDO
A NOSSA PROGRAMAÇÃO

minha mãe, ouvindo isso,
caiu sentada no sofá
a queda acordou o gato
que ficou contrariado
espreguiçou o corpo todo
e saindo do meu colo
desceu do sofá num pulo
e esbanjando rebolado
foi dormir em outro lado


hai cão

Os cachorros
piscam
deitados no chão


*


Rabo, pelos
ausência de agenda
o que me distancia
deles


*


Ter quatro patas
e não saber o que são
quatro patas


*


O estranho
no portão
recebido a latidos


*


O estranho recebido
com o rabo
e o focinho


*


O estranho
é amigo
ou coceira


*


Minha boca
é minha
única arma


*


O uivo
comunica
o uivo


*


Palavra
gutural
e única


*


Quando o cachorro
ama
o rabo balança


*


Não existe objetivo
que permaneça frente
à coceira


*


Um dono
que te ame
e sacrifique


*


Um dono
que te eduque
e te abandone


*


Um dono
que te bata
e te alimente


*


Um dono
que não
te entenda


*


Confunde
amor
com comida


*


Amor e comida:
mesmo remédio
anticoceira


*


Não:
a coceira
é soberana


*


Comer,
comer,
comer,


*


Cagar
a céu
aberto


*


O cão
lambe
o cu


*


O cão
cheira
o cu do Outro


*


O cão
se concentra
no pênis


*


É impossível castrar
o
desej
o


*


Existir:
vago nome
mutável


*


Viver:
tempo
incontável


*


O sonho
é um ganido
que acaba


*


Deitados
no chão
os cachorros


*



sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Deitado
na cama
do Tempo

o
planeta
vibra

com nós
todos
dentro

e os lençóis
pulsam
movidos

por
eventos
distantes

buracos
negros
que fundem

uma
pedra
no lago

ou
um
coração

escuro
o oco
do Espaço

pra gente
inventar
a certeza

que tudo
tudo se
Move

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

"Sabe, uma estória deve ter mil faces, é assim como se você colocasse um coiote, por exemplo, dentro de um prisma."

Hilda Hilst, "O unicórnio"
Um cheiro de pus e carne podre e material de limpeza em cada cômodo da casa, o nariz vai se acostumando e você também. Deitado na cama, ossos à mostra e feridas escondidas em cada dobra, algumas abertas, primavera, ele o jardim da morte, a gente, adubo em forma de pele gordura nos sonhos saber que dói cada minuto até que acabe, depois não sei. Ele grunhe um oi, um que bom que você veio se arrastando pela faringe, a boca. É um rasgo que todos os animais evoluíram. "Eu vou na cozinha", diz a mãe, a voz sempre embargada das mães, você cuida dele. Senta na beira da cama e pega com nojo a mão fria e suada entre as suas. Eu odeio a vida, eu odeio a morte. Os olhos assustados como os de um rato lento. Tem três anos a menos que você, parece ter a idade do seu pai, do seu avô, de todos os homens que viveram e morreram muito velhos. Que essa carne firme tão firme ceda e se dissolva em camas e caixões e na memória do esfíncter bruto, do pau duro suando vida a carne se enrijesça e assim continue, acumulando lágrimas e ócios e olhares vazios e vontades acumulando nada, essas flores dão frutos de nada, nada o futuro das plantas e do sexo e dos segundos ocos que o ponteiro deixa pra trás, nada e memória. Avesso ao vômito você se debruça e beija a boca imunda. Nega o café, o biscoito, se despede com pressa do apartamento, um cubo de nojo suspenso na cidade feita de esgoto e de gente que não se conhece. Chega na rua esperando vento, mas o ar está parado, e começa a andar ofegando de volta pra casa.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

se, por acaso
pixels e papéis
sobreviverem
aos vírus e à decomposição
do presente

talvez
virá
você
mestrandx do futuro
tirar valor
e dar dizer
a estes versos
presentes

escreverá
sobre eles
parágrafos ordenados
em páginas avaliadas pelos pares
na esperança
de dizer
algo de útil, duradouro
ou que ao menos valha o título
na esperança de que ele
faça mais fácil
a sua vida

desde hoje eu te desejo
boa sorte
na vida e na escrita se por acaso
você um
dia existir

domingo, 31 de janeiro de 2016

áspera
a sola
de dez
mil
pares
de pés

roça
o chão
de navios
cavernas
casebres
igrejas
em que os parentes ganharam
e perderam seus nomes
eu nunca
vou saber

mais
do que meia dúzia
de palavras
a mãe da nonna
jogada no Atlântico
e o pai do nonno
louco
de tanto ler a Bíblia

partos
no meio do mato
estupros
e bichas perdidas
dos fatos
da família

imagino uma grande reunião
os mortos infinitos no sonho mais eu
nos olhando com espanto e reconhecimento
um lapso o rastro genético, e foda-se
é o que pensamos
segundos antes de virar as costas
e andando
acordar

domingo, 24 de janeiro de 2016

Um bolo de aids foi servido no seu aniversário

Em volta os convidados batem palmas na lipodistrofia

Seringas cheias de porra o novo canapé

E mantêm uma distância de dez metros cada um

Os copos descartáveis o látex descartável

Masturbe-se em cima do bolo e coma ele sozinho

As lembrancinhas são de herpes gonorreia sífilis

A volta pra casa acontece por ruas iluminadas onde ninguém

Mais tem medo

De mais nada

Antibiótico antirretroviral antiapocalipse

Mais um ano pela frente até a próxima volta do Sol

Até o momento em que você começou a escolher viver

E pra isso tinha que tomar banho e se alimentar

E manter o desejo a uma distância

Segura


*


Numa sala observada / o aniversariante abre os presentes / mais uma cartela de comprimidos / é bom guardar no cofre / ano que vem com a troca do governo / com a queda do oxigênio / vão ficar muito mais caros


*


Um bolo de aids

Um bolo de câncer

Um bolo de espera


*


Aplicativos pornografia corpos na cabeça

Quando você morrer

Cosplay de homem-bomba uma metralhadora de porra

Setenta e dois rapazes de cock ring te esperarão

No extinto Cine Saci da avenida São João
Não acredito em

Inconsciente. Os passos dados se apagam

Pois o passo presente é a lâmpada.

Os sonhos são feitos

De demônios sem moral. As lembranças

São atos nostálgicos do mistério. E os atos

Nunca são falhos. O cérebro é

Uma carne que aguarda

Decompor-se. A vida

Desperdiça

Cada coisa que recolhe

Porque Deus preparou-lhe

Abundância de uma mesa na presença de sua amiga,

A morte.
Os cachorros deitados no mato

Entre as plantas cuidadosamente escolhidas pela grana

Sobre a terra remexida por minhocas vivas e bandeirantes mortos

Três metros quadrados de lembrança da floresta

Inscrita nos neurônios anônimos no perispírito paciente

Meu, da minha amiga e dos cachorros

Indiferentes ao domingo

Deitados no mato

domingo

Eu era acordado pela minha mãe
pra que pusesse a melhor das roupas
Deus não merece menos
a gente ia pra igreja na carroceria cheia de graxa
da caminhonete do meu pai sentados em cima de um papelão pra não sujar
a melhor das roupas

Hoje eu acordo no horário em que sairia do culto
sonho com a polícia militar e acordo com o barulho dos meus cachorros e dos passarinhos no mamoeiro
e lembro de Deus quando vejo as hastes secas
fechadas em si mesmas do vaso de capim-cidreira
faz dois dias que esqueço de regar

Quando a terra encharca de água
proveniente do sistema estatal de abastecimento hídrico do estado de São Paulo
pouco tempo depois as folhas do mato inflam e retomam a vida de onde
haviam parado

Deus é a caminhonete
a graxa
o chamado da minha mãe
a água e a polícia e o regador
o sonho e o esquecimento e a igreja
a melhor roupa e a camiseta esburacada
que eu visto agora porque me faltam outras
e o sol forte que seca as plantas
desamparadas

Eu sou o capim-cidreira

sábado, 23 de janeiro de 2016

o quarto azul

As paredes
escorrem dos teus olhos em mensagens de ex
amantes e amigos que agora vivem tão distantes quanto
os anos que você imagina se afastando
à medida
que sobe os olhos pelas paredes que
escorrem

Adolescente
cérebro
impedido em crânio antigo
de tocar e lamber e gozar nas bochechas gordas de um amigo imaginário
guardado na vontade de exceder
o concreto
das paredes secas e imóveis deste quarto e do teu
cérebro

Um cubo azul
como os lábios de um morto nunca visto que em vida te acompanhou
quando o corpo preso em medo e palavras de parentes não tinha alternativa
além
de se acompanhar
a si mesmo

Peito buraco e caralho mole

Encolhem na descida dessa nuvem carregada
que escorre

Queda
Destino de Tudo
Crave
as unhas nas paredes e evapore a Palavra
única circunstância de subida do impotente

Ela vem
Um colar de Dinamite
Explode o orgasmo guardado entre esses ossos indistintos não fique triste agora

Você

Pode parir o momento infinito no momento
exato em que o estalo esmorece Não Fique Triste

Agora
e Sempre

Você pode

Morrer

diário

mas
um
dia

o peito
leve
acorda

pulmões
depois
de uma batalha pelo ar

suspiram
alívio
éter no lugar de chumbo

queridos
dias
agentes de tortura do Tempo

alternam
a mão
forçando minha face no esgoto

e o peito
macio
recebendo minha cabeça cansada

até
quando
vou

aguentar essa alternância
de amor e desespero
e silêncio sereno antes da angústia

o Tempo
numa sala
iluminada e distante dos porões da verticalidade

em que a massa do planeta
torna tudo
mais
lento

aguarda
que eu responda
essa pergunta

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

batalha

O exército de minutos que o dia manda
em seus ponteiros e pixels invisíveis caindo chuva de chumbo nos ouvidos nos nossos ombros
abrem sete bocas a cada uma que entopem
com os comprimidos e a comida e a previsão de médicos limpos
de uma vida de látex e aids inocente

Eu sinto
cada um desses minutos marchando na capa gorda do fígado
escondido entre as orelhas de uma enxaqueca que compartilho
com
cada
um
dos meus
contemporâneos

Também eles às voltas com vírus
com sorrisos estéreis embaixo de máscaras impotentes
contra o gás carbônico que o chão sendo queimado expele na esperança
de nos
matar
a todos e retomar o império dele de fóssil inútil camadas de mucosas
decompostas, sete bilhões de pessoas
punidas por Deméter com um desejo
infértil

Memória
de ponteiros que desciam uma lâmina
de justiça sobre a nuca dos medos
jamais
esses ponteiros
venceram

Relógios esperas abraços de morte das mães meu fígado
assassino e minha cabeça
explodindo competem
pra saber quem será digno
de que eu diga
seu Nome.
eu tenho passado os dias
como se os dias não passassem

como se o meu tempo orgânico
coincidisse com o vácuo em que o planeta gira

mas mesmo esse vácuo é cheio
de mistérios e movimentos complexos das rochas que o preenchem

pensando bem, esses dias
tenho passado mesmo como nada que eu conheça

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

reto
receptivo
intestino

imagine
se a porra viajasse
por todas as tripas

atravessasse as feridas
da mucosa exposta
no triunfo

entre vielas e becos
se arrastasse
pela parte delgada

a que possui
mais neurônios
depois do cérebro

sem ser percebida
por fígado e pâncreas
chegasse no estômago

e ali gestasse
em ácido e alimento
um novo tamanho

diminuído
pra passar enfim
pelo esôfago

e alcançar
o sino
a tempo

de florir
a garganta e os dentes
e a língua em sons

matinais
espuma branca
de Urano no mar

de saliva
da boca
saísse

imagine
nascida em palavras, canção
tua porra

querido tempo

da ponta do dedo
pras células moléculas
e átomos e campos
magnéticos

um dedo
nunca toca
nada

porque as partículas
quando se aproximam
se afastam

*

mas a gente
não sente
em nível atômico

ou estaríamos com vertigem
o micromundo se movendo
o tempo todo

eu deitado
ao meio-dia me escondendo
do futuro um lençol na cabeça

vomitaria
nauseado
movimento

em vez disso
guardo todo o suco gástrico entre as paredes
incrivelmente imunes
do meu estômago

*

a gente também não sente
no nível macro entre as estrelas
a escura matéria que intriga astrofísicos no século de Einstein

ela é invisível e intocável pra alguém tão preso
à atmosfera e ao funil no tempo-espaço
que se chama por aí de gravidade

uma queda
infinita

com o peso de uma atmosfera sobre a cabeça
e o peso de um planeta
sob os pés

uma queda
imóvel

nesta cama de lençóis cheios de ácaros
me identificando a um corpo variado
em seus espaços e nos sólidos
incógnitos

*

querido tempo
que me aperta
em mim mesmo

e atravessa
os lugares vácuos
que eu não conheço

chegue súbito
feito um
pombo-correio

e me entregue
uma mensagem
diferente

orgasmo
equilíbrio
esquecimento

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Marcião

Deixa ela me bater! Um bando de bunda-mole vem separar. Continuo pondo o dedo na cara da mina e levo um chute. Quem você pensa que é?! Cê acha que eu vou revidar?! Todo mundo vai embora, ninguém me dá mais trela. Falta meia garrafa pra beber. “Você é um babaca”, alguém grita de longe. Bebo o resto. Ele anda em círculos no meio da rua. Leva um coió da polícia e senta entre as árvores. Quando amanhece, a cabeça pesa, não lembro de mais nada. Olho a primeira que passa. “Gostosa.” Ela nem imagina. Se imaginasse, também me batia.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

o fim constante

A vida é espera. Faltam três dias. Mas quando passam dois, antes que termine o terceiro, precisa esperar sua metade: o sol é lento no céu. A enfermeira traz o almoço, uma sopa rala. Antes que ela traga, você precisa acordar. E nem dormiu. Então precisa: dormir, acordar, comer, digerir e morrer. E não consegue fechar os olhos. Sob as pálpebras, estão sempre abertos. De repente, como se piscasse, tudo acontece: o terceiro dia chega e já está quase no fim. A vida é esperar o fim da espera. Meia-noite, madrugada, o quarto dia acorda. O tempo não se importa.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

devir animal

Acordado agora, uma tira pra fora da boca / sou um mágico / oito metros de tripa oca se desenrolando / e são mais oito. A cada dia, oito metros de esôfago crescem pra fora dos dentes e dos lábios. Já anda com um carretel, vai pro trabalho, umedece ou a mucosa racha. Tem quarenta anos de idade, oitenta metros de esôfago (a cada dez dias faz uma cirurgia). Chega de negar. Agora chama “tromba” – eu, “elefante”. Uso a tromba pra roubar comida dos restaurantes. Quando a polícia corre atrás de mim, pisoteio as viaturas e saio pela cidade, savana.

domingo, 17 de janeiro de 2016

A grande purga de 1984

Começou na lâmina que me arrancou

Do intestino de uma mulher desacordada

Dos intestinos dela, e rápido

A reprodução desenfreada das células me trouxe

A este um metro e oitenta e três

Centímetros e cento e dez quilos

De células

Movediças

Atrapalhadas

Armadilhas

Apoteose

Da grande purga:

Eu sou a tripa;

O tempo,

A lâmina
o dia que você pular
de paraquedas rumo ao chão

não esqueça de puxar
o piloto do avião

agarre o braço do comissário
enlace toda a tripulação

leve as asas pra cair
o trem de pouso e o timão

o dia que você pular
não desista no caminho

não queira encontrar saudade
nem virar um passarinho

não mire numa cidade
nem na casa do vizinho

não espere encontrar o chão
porque ele pode não vir, não

Saturno

Que lindo você é

Gordo e cheio de anéis

Girando iluminado

Cercado de escuro por todos os lados

Invisível a olho nu

Mas enorme

Manchado de caneta hidrocor

Na página de um livro

Brinde da compra de chocolates

Quando eu era

Criança

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

os rostos

Um rosto de água
se agita debaixo
do rosto de terra
e dá para ele a cara
fértil que às vezes
você olha

Em volta, invisível,
meu rosto de fogo consome
os dias e as noites são carvão
arrancado pela morte das minas de trabalho

Enquanto vário e aéreo
flutua perdido um rosto
verdadeiro, feito
de ar, promessa
de vento

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Eu disse que a noite era líquida. Ele não acreditava. Nadei pra longe e ouvi o nariz se afogando em borbulhas. Reconheci umas sílabas. "Que nada!"

*

Meus braços cansados e um medo de tubarões, são noturnos os terrores da noite? Li que eles comem às cinco da tarde. Deixo a cabeça meio erguida, pra que a noite não entre no meu nariz. E flutuo na superfície de quilômetros, escuro. 

*

As horas antes do dia
se iluminam
com a mesma melancolia
do crepúsculo

Mas são mais frescas
derrotadas
as horas antes do dia.

*

Essa praia serve, porque agora o profundo acorda. Tenho medo de ser comido. A televisão me informa: tem animais caçando. O. Tempo. Todo. Desenho na areia uma silhueta do meu amigo afogado na noite. O dia é seco e chato. As ondas lambem as pernas dele e levam elas embora. Eu queria ser as ondas.

*

O planeta
você sabe
é simultâneo
a si mesmo
não conhece
o absoluto
escuro ou claro
tem uma face
esférica
voltada
pra todos 
os lados

*

Deus
é luz

Estou
à sombra
do Pai

Por que
não Se
move

Por que
não some
Senhor?

E a luz
de Deus
distante
deixou
de iluminar

Agora
a nossa cegueira é mais pura
solitária
é só nossa

Era esse escuro
que você queria?

A noite, de novo
nos molha.