sábado, 27 de dezembro de 2014

"Acredito que o mal-estar atual – talvez um novo mal-estar da civilização – é hoje visceralmente ligado ao que acontece com o planeta. E que nenhuma investigação da alma humana desse momento histórico, em qualquer campo do conhecimento, possa prescindir de analisar o impacto da mudança climática em curso."

http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/22/opinion/1419251053_272392.html

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

calendário

Numa nave
este ano que termina
ganharia ou perderia
mais uns dias

a viagem
não começa
no ponto
de partida

ela gira
sem centro
em movimento
espiral

no vácuo escuro
do universo este ano
que termina não alcança
o seu final

mas nós
saudamos mesmo assim
o aceno do sem fim, por enquanto
o sol
o asfalto cruzado do seu
dia, homens de terno, volume
denso na calça, despojado você
desce a rua das horas sem nenhuma no
coração, agarra a caneta com
raiva e me dá mil motivos pra sair
por aí com as bolas à mostra, semeando
divindade ou desgosto, ao sabor do amor
paterno.
acredito certamente no poder criador do rock,
lambendo o suor no meio das pernas, mas
ponho atenção no trabalho que deu chegar nesse
ritmo
plenisfério, caduco
este mundo de avessos, de estrelas

fui embora e deixei a luz acesa

a ponta de terra se afastava e o resto era uma boca aberta azul-celeste, indistinta de horizontes, enquanto o azul me engolia / me foi dito na cama / o céu estava claro e teve tanta turbulência, é o tipo mais perigoso, não avisa em nuvem, breu
e de repente um revolto vento, o voo desastre no invisível

se o piloto era experiente?
aterrissei no chão que não treme.

~

vários fusos estes
nosso corpo é um globo terrestre?
o estado da vida é o jet lag

(limpando meu quarto, jogando os papéis fora, pondo o baú on-line, este deve ter sido escrito depois de voltar de portugal)

domingo, 21 de dezembro de 2014

História do vazio

bancos em flores e namorados no jardim, o vazio nasce entre formigas mínimas, sementes do infinito, e brota crescendo de pouco em pouco / o vazio vai engolindo as graminhas e as florzinhas e os animaizinhos, insetos depois pássaros e gatos e cachorros, a cavalaria da polícia, o vazio engole a polícia / e os namorados, e os bancos onde os velhos estão sentados, e os velhos com seus passados / uma sirene é acionada, mas o vazio engole o som e agigantado chega ao céu / o vazio engole o céu, e debaixo dele, e se espalha até que abrange o planeta e os planetas e a galáxia / enquanto houver matéria de qualquer maneira o vazio continuará crescendo / nos confins do desconhecido ele encontra a sua fronteira / e já não é necessário / o vazio se funde ao que não estava / e era impossível / e o esperava

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

algo / que não se sabe / bem o que é / entrou em frente / ao sol / roubou-lhe / a luz / sobraram / só / as sombras

Agora, tudo o que cresce no país tem um tom amarelo, não restam dúvidas, e todos os gatos são pardos. As fábricas de pilhas e as águas represadas ganharam notoriedade, as taxas de crime permanecem, na praça todos os dias os mesmos pregadores anunciam o amor violento, sanguinário, impiedoso do deus deles. Contrariando os pessimistas, o número de turistas aumentou, agora atraídos por essa terra escura e exótica, de brancos pálidos e negros invisíveis.

no family is safe

Don’t you know you’re queen?
Yet even flower bloom at my feet
Don’t you know you’re queen?
Cracked, peeling
Riddled with disease
Don’t you know me?

No family is safe
When I sashay

Don’t you know you’re queen?
Gleaning, wrapped in golden leaves
Don’t you know me?
Rank, ragged
Skin sewn on sheets
Case in the barracks
For an ass to break and harness into the fold


Mary

aproximadamente
desde o começo
da voz e do batuque
e da linguagem articulada

a
gente
tenta dizer
as palavras perfeitas
na ordem perfeita

e se estrepa

do mesmo jeito
que encaixar os dias
nos dias perfeitos
causou guerras e massacres
e comédias e internações em massa
e deu
na maior
parte das vezes
em nada

o acaso
ou deus
o que dá no mesmo
escrevem torto
por linhas grossas
como o amor que o meu pai não sabia expressar
e que era ódio e está morto
e era um grosso

tudo torto

assim
assino o meu contrato de resignação
num dia em que inundou-se
a avenida e eu fiquei
com a água nojenta pelas canelas
encharcando os meu tênis
as moléculas dela interagindo sabe lá de que jeito
com as moléculas dos meus
pés

galera,
os dias e a linguagem
são uma sala de espera

aproveitemos o tempo
que nos resta
o corpo às vezes

abre
pra dar
caminho ao sangue

pense
que tédio deve ser
empurrado o tempo
todo
por um músculo
indiferente

ao que o líquido pretende

um risco
na pele, uma queda
de joelhos, o sangue
desaba

sobre os medos
de vírus bactérias
que entram a criança
que eu fui

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

nenhuma roupa me serve mais

então
eu devia parar de comer
toda a gordura
que os outros animais deviam parar
de morrer estaríamos
todos vivos e
vestidos
sem espanto dos amigos que diriam
nossa
você está magro
e bonito
e cheio de amigos
cabritos e vacas e pintos
correndo entre as pernas não seria
lindo
poder
ter esse tipo
de conversa?

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

the man i love

Um prédio de todos os andares, os carros a janela passando lá embaixo trazendo sons de ida e vinda aqui pra cima, e os homens recortados no site do outro lado: em camisas, sem camisas, se eu medisse todos os pênis desse prédio a altura alcançaria? Toma chá agarrado à cortina, crequelenta de semanas de porra seca, precisa lavá-la. Depois se veste e desce e anda e verbos até que dentro do escritório, de novo e sempre a rola dura apertando o coração, querendo escapar de calças e cadeiras, das horas de almoço, no escuro do cinema entrando em bocas e bundas e conchas de mãos, o amor é um picadinho, um chapéu na cabeça umedecido da garoa, vapor de virilha subindo e ofuscando a visão, volta pra casa, um casarão, para a esposa e os filhos e as cortinas, sobe nela uma vez por ano e se alivia quando engravida, medo nos becos, nos parques, na cidade que se acumula sobre si como um prédio de apartamentos cheios de picas moles dentro. Então acorda e bochecha a água branca e corre para a redação e datilografa o que chega da coluna policial, e não responde às brincadeiras e sai e encontra o cara do site e fode e volta resmungando "The man I love", dorme entre os irmãos na esteira sobre o chão e sente pressionando entre os quadris essa canção desconhecida, não sabe uma palavra em língua inglesa.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O número de mortos cresce exponencialmente e ninguém mais consegue calcular. O governo lança um edital de contratação destinado a suprir o déficit de funcionários responsáveis pelo departamento de contagem de mortos. Mas o número necessário de novas contratações é muito maior do que o número de pessoas vivas na população. É que morre muita, muita gente. Então o governo emite um decreto em que obriga cada recém-morto a comparecer ao cartório mais próximo, emitir duas vias de seu atestado de óbito, sendo que uma fica consigo e outra deve ser depositada numa caixinha dourada. Quando o morto não comparecer no período estipulado, um juiz poderá acionar a força policial para constrangê-lo, se preciso utilizando violência física. O número de policiais cresce exponencialmente e ninguém mais consegue calcular.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

As ruas da cidade cobraram vida e resmungavam a cada passo ou roda de automóvel, raiz de árvore que saltasse da pele, e gritavam e choravam e xingavam tanto que fomos pouco a pouco saindo em direção ao campo, caravanas, onde o chão não nos negava e conseguíamos dormir, de algum modo sempre sobre ele. Mas então os arbustos e as gramas e toda planta nos quiseram expulsar, e fustigavam com os galhos e davam frutos que envenenaram nossos filhos e urticárias nos narizes, nas solas dos pés, até que nos venceram e nos juntamos e fomos em direção ao mar. À beira da praia vivemos muitos anos entre areias e cocos, conhecendo peixes e moluscos, cabelos salgados, até o dia que o mar abriu suas bocas de onda e, sem aviso prévio, nos tragou.

domingo, 7 de dezembro de 2014

por milhares milhões por
séculos as árvores não tinham
organismos que se alimentassem delas

depois de mortas empilhavam-se
umas sobre as outras
idênticas a si sem decomposição

se uma árvore cai na floresta
há bilhões trilhões de anos não há
ninguém para ouvir sua queda

ela faz algum barulho? aquelas
renascem hoje nossa busca por pedras
e fósseis previsões de futuro

para morrer não basta
estar vivo é preciso
deixar

ruídos
ruínas
vestígios
deus
deposita sobre o chão
moldado em pedra e sopro
prédios e outras construções
cidades cada vez enormes

a confusão dos idiomas
não bastou como vingança
sereis eternamente condenados
a babéis horizontais e quedas

vossas esquinas serão prisões
o solo não abraçará vosso cadáver
disse deus na segunda pessoa do plural
quando ficou bravo com os homens

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

a cidade vai ficar pronta
enquanto vocês dormem
podem ir

sonhei com esses versos, que eram cantados em forma de mantra ou refrão pop, vindo de lugar nenhum que eu me lembre. outra vez, há vários anos, sonhei com estes outros (dessa vez na boca de um cantor):

eu não quero alguém
não preciso alguém
eu não sou rural

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O jardim das plantas ordinárias

fôssemos todos
nós a tempo todo
felizes e presentes
entre as pernas e as
esperas o jardim
das urticárias e das plantas
ordinárias se
esfacelaria
entre os olhos

peço
um pátio vazio
um terreno baldio
onde o mato
cresça
ao contrário
dos desejos
e por isso mesmo
o chão
floresça
inteiro