sábado, 24 de março de 2018

a verdade
vagabunda

não arranja emprego
pede esmola
ganha um prato de comida
e larga
porque não gosta da mistura

vaga
pelas ruas mal cheirosa
e escondida
apanha da polícia
da gangue neonazista
e nunca ganha uma carícia

minto
a verdade
tem cachorros

vários
soltos e amarrados
todos sujos e cheios de pulgas
todos eles vagabundos
companheiros
seguem ela
lambem ela
protegem ela

eu sou um cachorro da verdade
a dor é mais profunda
mas pomada ajuda
sim

massagem
remédio
deitar no divã
nada resolve
mas ajuda

nada chega
mas surfa
nas ondas da dor
profunda

a morte
é uma âncora que enfim
te afunda

ou é um troço
que te dissolve
e te arrebata pro alto
pra longe da superfície
e mais ainda
do fundo?

ou te transforma
num pato de borracha
perdido na ciranda das correntes
até que empata
numa praia?

meu deus
existirá alguma praia?

brisa
doce
notícia
tudo ajuda

a dor é tão funda
é tão lá no fundo

- ela nem te conhece

domingo, 11 de março de 2018

minha avó separava as folhas de almeirão
metade para o caldo do meu vô
metade pra gaiola do canário

amarelo, ele cantava de alegria
meu vô na poltrona marrom
também ficava contente

aprendi com isso que somos iguais aos passarinhos
explique a comparação como bem entender

hoje tiro
desse maço amargo
essa lembrança boa
e tomo minha sopa cantando
por dentro
na gaiola do peito
te dou
tempo
o meu tormento

meu esqueleto
meio
desatento

os medos
e os jeitos
de vencê-los

os risos
e os jeitos
de morrê-los

te dou
o peso
e a leveza

pra que você
mastigue
com certeza

sábado, 10 de março de 2018

cemitério são joão batista

te vi
pedras que sobem do asfalto
e subi também
até chegar perto
de um platô de uma cabana
onde invadia a intimidade de pessoas
empoleiradas no alto, sem cercas
talvez sem intimidade
então desci alguns degraus e contemplei
a cidade
maravilhosa
com lápides até onde o olho alcança
bustos que não me importam
nomes que não me dizem
o espanto de não encontrar
abacaxis e rendas no túmulo de Carmem Miranda
só uma assinatura dourada e discreta
assim
será a morte pra nós todos
apesar das estátuas de mármore que se encomendam
mas que ruem ao menor
terremoto tsunami guerra intergalática
essa linha fina e brilhante
refletindo o calor e a luz
de um sol que não descansa
enquanto
estivermos aqui?

sexta-feira, 9 de março de 2018

o corpo fornece alento
pra essa vida feita de coisas
impossíveis de comprar
e outras, abstratas
que vão além dos cinco sentidos
com espanto e conforto
passo a língua no dente partido
sinto o ar massageando meu fígado
quando respiro algo que não vejo
é bom viver, ele me diz
contra todas as probabilidades
o inalcançável
não alcança

quinta-feira, 8 de março de 2018

no grande esquema

conhece
a morte
que se aproxima

fareja
ela
pelo rabo

reconhece
e ela
corre pra longe

você
se distrai
com outros rabos

nesse cercadinho
em que o seu dono
te trouxe

pra brincar
no grande esquema
(o cercadinho)

a morte
é só
um outro

rabo
abanando
entre tantos

e quando
ela vier
já vai

ser hora
de ir
embora

quarta-feira, 7 de março de 2018

glória

procuro em poetas a companhia
que nos falta a todo mundo

páginas e manchas que se alastram
desde que a língua foi inventada
e a tristeza gutural dos bichos em tarde de chuva virou palavra
falha

e nessa falha
nesse vão
por onde cai qualquer um
que tropece ou que se jogue
é que brilha
a graça da falta
que glória

queda livre dos planetas uns em direção aos outros
e nessa bagunça de vácuos e matéria inanimados
uns encontros previsíveis na noite
é que me salvam mais do que qualquer
remédio mais do que qualquer
balão de oxigênio

mortos e vivos
somos todos
iguais

vivos ou mortos
estamos todos
juntos

terça-feira, 6 de março de 2018

não me deram nada do que pedi mas nem por isso fico reclamando

não me deram uns fones de ouvido
pra distrair da vida
como eu gostaria

que você saiu do útero
e por isso é tão nostálgico
é o que dizem

e reclama de barriga cheia
minha mãe
apontava pras crianças com fome e recomendava gratidão

mas não me deram nada do que eu queria
uma foice pra cortar cabeças
um dildo de estrelas

paz, justiça social
sozinho no quarto a morte a cada estalo de dedos
uns fones de ouvido

tocando alanis morissette
desde 1997
não me deram

e eu não pude
e não consigo
e não tenho dinheiro pra comprar

exércitos que resolvam
meus anticorpos ameaçados
orem por mim

em breve
prometo
continuo tentando

música pop
era de aquário
cabeças rolando

segunda-feira, 5 de março de 2018

passeio ao crematório

olha a fumaça
ele diz

os cachorros em volta
se cheirando nos cus
nem aí

as árvores e a grama
talvez esperem ansiosas
as cinzas que o ar anuncia
nutrição com vingança

os mesmos seres que me mutilam
traficam violam e matam
tostados agora eu os como
pelo rabo

eu volto pra casa com os cachorros
passando entre prédios construídos
com o esmero do dinheiro
essa pirâmide
papel metal bitcoins

tanto concreto
pra um dia
dispersar no vento

dez patas
que confiam no atrito
nos servem de transporte
até o portão
que inventa a cada pausa
a propriedade privada

isso
ele diz
também
passará

enquanto isso
aproveitem o sol
meus amigos
e o ar

repleto de moléculas
que um dia foram gente
cachorro
planta

como eu
ou vocês

sábado, 3 de março de 2018

escrever sempre como se fosse morrer

spoiler alert e se for viver pra sempre?

a intensidade é um fetiche do século vinte

escrever como se escrever fosse o bastante

como se bastasse estar vivo e morrer e escrever enquanto isso

dois palitos

para o fim do mundo

em texto escrito

viver como se tudo já estivesse dito

como conhecer a morte

morrer como se não tivesse vivido

como se tudo fosse alimento pra outro ser vivo

no grande esquema das coisas

escrever como quem come