quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

você viesse
ano-novo
numa noite
de abril
entrando o outono
mal contornado
deste trópico
de capricórnio

ou estourasse
em outubro
com as plantas
eriçadas
em cores
e sexo
de abelhas

qualquer
que fosse
o dia
de chegada

- que chegue
ano-novo
anti-
calendário -

explode o ontem
em fogos de artifício espalha
a semente
do irremediavelmente

hoje

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

sonhei com meus dentes quebrados

pelo ranger noturno eles pareciam

flocos de neve ou móbiles de Calder

só que mais tristes amarelos e com cáries

acordo e passo a língua nesse duro

aparato de morder e ter medo o osso da boca

percebo-os inteiros lascados o de sempre

mastigo a mucosa da bochecha com alívio e decepção

domingo, 27 de dezembro de 2015

biografia do meu esôfago

A primeira vez que te vi foi na aula de ciências, riscado em giz na lousa, e nunca esqueci as primeiras palavras, movimentos peristálticos.

*

Por que as coisas não caem pela nossa boca quando viramos de ponta-cabeça? O túnel se desengolindo, tripas o cu caído precisamos chupá-lo de volta, obrigado, esôfago, por se dar ao trabalho.

*

Quando um homem te tocou e sentiu as feridas que você guarda, como não guardaria?, se você é paredes tubulares de uma carne finita, e um oco comprido na labuta de mover tudo, como o tempo, numa única direção.

*

À noite nos reviramos, dentro de mim você arde e me lembra: sou um corpo composto de ocultos / que ardem, no entanto / Os homens te descobrem a cada tanto pra te acalmar. E eu faço a pergunta inútil:

é no seu escuro que, um dia,
vou entrar?

os livros

É o pó do primeiro ao último. Quando você chega no último, precisa voltar tudo de novo. A bibliotecária pergunta se ele entendeu, ele diz que sim e ela se vai. Então começa: tira o livro da prateleira, passa a flanela na capa, na quarta capa, entre as dobras que ligam a capa às páginas moles do miolo, no entorno, e folheia rapidamente tudo, feito um voo, pra espantar o pó. Sente o nariz coçando embaixo da máscara. Tem vontade de enfiar o dedo na narina, pegar um pedaço de ranho e enfiar na boca. Mas luvas máscaras muito trabalho, muita sujeira. E pega o segundo.

A biblioteca tem infinitos livros. Todos eles escritos numa língua que você não sabe ler, que são todas. Você não sabe ler. Você nunca limpou uma biblioteca de infinitos livros. E, mesmo assim, todo dia está tirando pó, e todo dia está lendo as coisas de que tira o pó. É assim.

Agora faz uma pausa pro café. Este texto era pra ser um manual de instruções pra limpeza da biblioteca. Quando volta do café, com uns restos de bolacha úmida de saliva maçarocados no buraco do molar, você pega este texto e passa-lhe a flanela.

*

Ontem eu limpei todos os meus livros. Hoje, mudando uns de lugar, percebi de novo pó. Se eu não tivesse livros, o pó estaria nas coisas que eu tivesse. Se eu ficar bem quieto, fico empoeirado.

*

Eu morri, com esperanças de que nunca mais tivesse que lidar com o pó. Ai, que desengano. A alma é o pó que cai nas coisas.

*

Mas eu não tenho alma. Que sorte. Virei um vazio, um avesso, uma voltagem perdida dos fios. Virei um naco de matéria escura, onde o pó não se acumula.

*

Das prateleiras, os escritores mortos riem de mim ao rirem deles mesmos. Você tenta esculpir uma palavra. Você consegue e ela brilha. E depois a poeira a torna fosca, tosca, o desdém é um destino acidentado, porque logo vem o moço da flanela e uma brisa enche os pulmões das páginas amareladas, mas ninguém consegue insuflar fôlego simultaneamente em todos nós, escritores mortos, e quando morremos nós somos todos um só, todas e todos, conjugamos mofo e refrescância, somos casa do nada, do tudo e do pó.

*

Palavras,
poeira
organizada.

*

Palavras,
flanela
passageira.

*

O salário é uma safadeza pra esse tanto de trabalho. Olho a bibliotecária com raiva e disfarço quando ela pergunta: falta muito? Ah, falta, sim, senhora. Olhamos a extensão das estantes se perder na queda do horizonte. Ela suspira, tudo bem. E volta à mesa dela, onde cataloga cada um dos volumes infinitos. Eu volto pras estantes.

Alguns livros, eu pulo de propósito. Quando ninguém está por perto, bato uma punheta em algumas páginas, vão ficar grudadas com a minha porra escondida nas palavras. Ou então tiro a luva, tiro o ranho, mordo e guardo a gosma verde, espessa de pó, no buraco do dente, com o resto da bolacha.

As estantes não acabam.

Saboreio enquanto posso.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Sua mãe

Teve aquele dia em que você acordou e desceu as escadas, de repente a casa tinha escadas. Tinha uma casa e ela era cheia de escadas. E, como se não bastasse, quando chegou na mesa do café lá estava: a sua mãe, preparando o seu café. Ao lado dela, a sua mãe lia o jornal, enquanto, de costas pra todo mundo, a sua mãe molhava as plantas do batente da janela. Três vezes a sua mãe, bom dia. Você esfregou os olhos e continuou vendo a mesma coisa, então resolveu ir até o banheiro lavar o rosto: subiu escadas, um número materno de degraus. E o espelho do banheiro é só sinceridade: lá estava, te olhando com espanto mal disfarçado numa máscara de amor, o rosto da sua mãe.

Correndo pela ruas, caindo e subindo de volta na bicicleta, a sua mãe dirigia ônibus, pedia esmolas, andava altiva e distraída com um cassetete na cintura. E servia mesas nos restaurantes, andava de mãos dadas com a sua mãe em uniforme de escola. Você pedala, o mais rápido que pode, entre as buzinas e de olhos fechados, e consegue o corpo exausto, sedento, faminto, chegar a um resto de floresta, está mais pra mato, depois do fim da cidade e da periferia dela. Você sentiu o chão se arremessando sem piedade contra o seu corpo assim que as pernas amoleceram e a bicicleta perdeu o fôlego. Tremendo de frio, de medo, de cansaço?, você viu a luz do Sol piscar entre as folhas que o vento brincava. Uma brisa fresca e um planeta seguro. Você suspira, leva a mão à barriga e mastiga um grito. Lá dentro, no escuro e sem rosto, alguma coisa mexe.

sábado, 19 de dezembro de 2015

os diários me deram umas amigas

e uns meninos que eu lambi com gosto

enquanto busquei novidades nos meninos

hoje sem querer é que as encontro

depois de perder duas dúzias de namorados

e de passar voo rasante as doze casas do zodíaco

salvei a princesa que era eu

trancafiada na última torre do castelo

e joguei ela no precipício

vi a princesa caindo inconformada

mas caindo a gravidade não precisa de confirmação

e comecei de novo a subir

as doze novas torres que se abriram

agora sei que lá embaixo tem um

trezentos

dragões


segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

notícia da reintegração de posse

Sentados em volta da mesa
aos gritos escutando a advogada
que diz dos riscos de policiais
armados disfarçados de civis
mesmo os civis são perigosos
vivem nos covis do medo

Meninas, meninos e meninas
decidem como irão receber
os jornais e os exércitos que
dirão "Vocês não podem mais fazer
a vida como a querem ter"

E escolhem entre correntes e cadeados
amarrados nos seus corpos pequenos
e nas pilastras da escola ocupada faz um mês

E uma saída na surdina de madrugada
com pais de testemunha e portões abertos
à retomada da ocupação assim que os juízes e o exército
se esquecerem deles


domingo, 13 de dezembro de 2015

gorda
nas coberturas
e de vida tão dura
é uma contradição em termos
de terno
suado
nos trópicos quem diz
que se pode compreender
o corpo
um
aprendiz de tantas contradições
se gastando até perder
o que a gente é e aumentar
de importância nos olhos
de quem quer
continuar

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Pescoço, pé, como era mesmo a ordem do corpo

Olha e recomeça: pescoço, peito, perna, pé

O que vem antes, o que vem depois, e o que vem no meio

Um roliço contundente, decidido, vem no meio. O cu se contrai e se dilata contra a vontade. Poucas dores (locutora do documentário pra televisão) poucas dores se assemelham a essa, segundo os médicos, que provaram todos do roliço impaciente, você diz

Para, para...

E ele se retrai meio confuso. O sorriso em cima de tudo diz "calma, respira", porque não é no dele.

A sua mãe fala:

É sempre mais fácil quando não é com a gente.

Ela deve saber. Pois foi a sua mãe que com o rolocompressor esmagou Gothan City.

Esta é a história da sua mãe:

É uma noite fria entre os lençóis do Homem-Morcego, já acostumado à solidão ele nem nota, e até prefere. O treinamento dos heróis requer muitas noites ao relento, e com conforto ninguém luta. Bruce Wayne treme mas se mantém firme no propósito: de dormir até que seu corpo e sua mente se reencontrem e ela possa sair pela cidade, sedento, caçando criminosos.

Esta noite, no entanto, algo o interrompe: a mansão Wayne no meio de um terremoto, quantos ataques terroristas, pesadelos, a guarda baixa do Homem-Morcego são necessários pra fazer tremer o chão e as paredes, pra que o mordomo fique preso entre os escombros e suspire aos ouvidos do amo as palavras finais: "Eu te amo".

Um arrepio diferente percorre o corpo rígido de Bruce Wayne. Seus olhos adquirem a consistência de vidro fino numa tempestade, o vento uivando em seus ouvidos, Bruce Wayne sente uma lágrima que ferve ao descer por suas bochechas. Em instantes, o Batman aparece de capa e cinto e cueca aparecendo, uma armadura o Cavaleiro das Trevas escala os ares à procura do motivo do estrago.

Sempre.

Tem.

Um motivo.

Pro estrago?

No intervalo comercial, infinitos sorrisos assombram a sua tristeza. Dentes brancos, livres de cáries, ameaçam te morder.

As trevas ressurgem quando você quase já não resistia. E a sua mãe triunfante reivindica o fim de Gothan City, é ela, vê?, de avental sobre o rolocompressor.

Que esmagou os crânios das criancinhas, do comissário Gordon, de todos os supervilões que escondidos não puderam se proteger, A sua mãe não aceita alianças. A sua mãe não tem piedade.

Através da tela, ela olha diretamente pra você. Cuidado. O amor que ela sente não tem fim.

Quem poderá acabar com esse terrível amor incondicional?

Eis que da noite se forma um homem escuro, imenso, com sede de vingança. Suas botas de ferro no peito da mãe arremessam pra longe aquele corpo que não fosse ser mãe seria

Como.

Qualquer.

Outro.

Com um tiro um estilingue um bumerangue em forma de morcego, o Cavaleiro das Trevas desliga o motor do monstro e salva a Gothan City uma vez mais.

Com a Bat-Corda amarrada no quadril, o Batman chega ao chão e trava o maxilar: em volta, prédios e asfaltos tingindo do sangue negro da noite de Gothan.

E.

Entre ferros retorcidos e carros revirados.

Está.

A sua mãe.

O Cavaleiro das Trevas avança com ódio em direção a ela. Você matou os meus amigos, os meus inimigos, a minha cidade!

Enquanto ele percorre com os dedos os compartimentos de seu cinto, a mulher recobra a consciência após a queda e, percebendo sua derrota, chora.

Na lágrima que agora escorre no rosto da sua mãe, prestes a ser executada, o Homem-Morcego vê sua vida: a infância breve com os pais assassinados, um mordomo de mãos firmes no seu ombro adolescente, a vida ociosa e sem descanso de um bilionário vingativo.

Por trás da máscara de tecido sintético que deveria imitar um morcego, Bruce Wayne sente uma onda de calor envolver seu corpo. E diz a palavra que, desde menino, nenhuma mulher jamais lhe respondeu:

"Mãe"

A câmera se afasta dos dois corpos prostrados no chão derrotado, e sobe mostrando a destruição sem fim que se tornou Gothan City, e os Estados Unidos, e a América, e o planeta Terra. Mergulhada agora na densidade escura do espaço, a câmera descobre que o universo não tem dias e não tem noites.

Também não tem heróis nem mansões.

Mas.

Mais importante que tudo.

O universo.

Não tem mãe.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

As palavras têm uma densidade difícil de esvaziar

Mas cada sílaba dita ou escrita é um buraco de minhoca

Por onde a densidade escapa e reaparece ligeiramente modificada

Até que ninguém entenda mais o húmus

Que ainda assim fermenta o nascimento

Do sentido.

Dos incontáveis

Barulhos soltos desde que o mundo

Concentrado em torno de si mesmo deu início

À transmissão aérea do ruído

Sobram tão poucos, poucas páginas, tudo é resquício

E borbulhas instantâneas desde as crateras do presente

Se esfriam em contato com o ar, se tornam pedra

Pra logo vir o vento e erodir esquecimento.

Mesmo assim

Sendo breves passageiros do tempo eterno

É nesses espirros e tropeços que a gente vive pra sempre

Falemos escrevamos erupções a todo o tempo

Estar vivo é (só) uma questão de movimento.

o último governador do planeta

O governador Geraldo Alckmin tem tido muitos pesadelos. Esta noite ele sonhou que o estado de São Paulo estava em chamas. Quando acordou, no lugar de lençóis de algodão egípcio um palácio o protegendo contra o tempo, um cheiro de fumaça em volta e dificilmente a gente sonha com cheiros, dor também não sonha, que nem essa micose ardida de repente entre dois dedos do pé direito de um homem que comanda exércitos, quem diria, os fungos não te obedecem.

E foi levantando devagar entre os escombros, sangue desconhecido em volta, onde estão os assessores, secretários, seguranças? Onde está o helicóptero, o estado de São Paulo, a cama, o governador Geraldo Alckmin tenta dormir de novo, às vezes quando você dorme acorda dorme tudo volta a ser o que era, um homem negro e uniformizado traz uma bandeja de prata com a cabeça dos inimigos, no pijama listrado o governador quer mover as mãos feito maestro de orquestra a bandeja é maior do que a região de Pindamonhangaba, e as cabeças dos inimigos sobem aos céus um edifício de vitória.

Mas não esta manhã, Geraldo Alckmin descalço com micose andando em brasas, até onde o olho alcança, tudo é o seu reinado, e é um horizonte sujo terraplanado, onde está a grandeza do estado de São Paulo, a tropa de choque atacando a cheia do Tietê, onde estão as águas, os amigos felizes, os obedientes, os pés tropeçam em ferros retorcidos no que antes era um asfalto liso e lindo, cinza como os seus mais belos sonhos.

Andando horas em busca de comida, de uma garrafa de água mineral, de alguém que diga "sim, senhor", "sim, senhor governador", o governador Geraldo Alckmin enfim encontra uma protuberância no seu medo, e se aproxima: numa cova cavada fundo, 14 milhões de cabeças sem corpo, e é só olhar de perto: cada uma é a cabeça do governador Geraldo Alckmin. Aturdido, inconformado, ele se deita e está cansado, e enfim dorme, e tem um sonho:

A salvo novamente no palácio, todos o olham de novo prontos, satisfeitos. Um homem negro uniformizado entra. E uma brisa fria faz cócegas no seu pescoço.