segunda-feira, 29 de agosto de 2016

impeachment

a presidenta do país de que tanto mal falei
eu queria que ela fosse minha amiga de bar
recuso todos os convites por falta de dinheiro
também porque prefiro ficar em casa pensando que preferia não estar vivo
a gente brinda quando esquece dos problemas
todo mundo vai ter câncer por causa de agrotóxico
quem diria este ano de dois mil e dezesseis
vai chegando ao seu final

sem nenhuma pretensão de alcançar
um dia além do trinta e um de dezembro
este ano é que nem eu

depois de tudo
vamos ser uns átomos desorganizados
e um suspiro que a memória

de alguém

solta enquanto pensa
no que gostaria de comer

presidenta quando você descer desse palanque
sabendo ser a única entre milhões de inelegíveis
se o rumo dos corpos tivesse sido outro
a gente brindaria de um jeito bem genérico:
saúde
nada é o bastante
e como se tudo já não bastasse
tudo que basta
é bastante nada

sexta-feira, 26 de agosto de 2016


(Samuel Rawet, "Homossexualismo: sexualidade e valor")

soneto do escritor bem-sucedido em seu jardim

sentado na garagem da casa que eu alugo
com meus dois cachorros sujos
roupas puídas chinelo furado
e um portão corroído de ferrugem

telefonando pra pedir dinheiro emprestado
fervendo água pro mate lavado
os livros empilhados no chão empoeirado
trinta anos e nenhum livro publicado

eu sou um sucesso
na longa linhagem de escritores que triunfam
no fracasso

pego com dedos leves as minhocas que tentam escapar
investigo a origem comum da alma dos animais e das estrelas
delicado e satisfeito devolvo elas pra terra

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

com a coluna esticada em equilíbrio e alegria
e o focinho à procura de aventuras
o cachorro vive sua vida
atormentado só por pulgas

dez palmos de língua pra fora da boca
um acaso que não desiste
o cachorro cumpre sua missão
de mijar em tudo que existe

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

acordo e encontro
de novo o meu corpo
vivo, pedinte
um misto de estômago bexiga e intestinos conflitantes

as abelhas sobrevoam o jardim
o cachorro assovia por atenção

o que estava molhado em mim secou
enquanto você roncava sem eu perceber

cada pessoa é sozinha em seus sonhos e na hora que desperta
por isso os seus olhos escuros me trazem calma

quando eu acordo e encontro
de novo o meu corpo
e o seu, vivo, ao lado

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

o pato bonito

no fundo do mato
do bosque esquisito
um ovo guardava
o pato bonito

a cobra que tinha
o estômago aflito
queria o ovo
igual pirulito

pulando pulando
com um faniquito
quase pisava
no ovo o cabrito

se ele pudesse
o pobre periquito
chocava o ovo
chupando um palmito

e quando nascesse
o pato bonito
ia achar muito feio
por não ser periquito

assustado voava
assustando o cabrito
e a cobra comia
sem querer o palmito

sobrava chocado
no bosque esquisito
o pato, coitado,
sozinho, acredito

mas sobrava contente
de não ser ovo frito
e de agora poder
contemplar o infinito

"o infinito é bonito
no bosque esquisito"
é o que disse, num grito,
o pato bonito.



terça-feira, 9 de agosto de 2016

Monumento à capivara velocista

A capivara vem correndo
oito milhões quinhentos e dezesseis mil
rasos quilômetros quadrados

temos que pegá-la
e implantar um chip nela
pro global positioning system

depois a CIA captura
de helicóptero no meio da selva
e leva pro museu dos bichos extintos

o governo brasileiro
bombardeia o resto dos índios
constrói lindos estádios de soja

orna ao redor com ciclovias
estátuas de bronze de capivaras
e guaranis kaiowás

explode o ouro pra fora do solo
cada habitante do território
tem direito a uma medalha no pescoço

pra se enforcar ou subir no palanque
e depois de tudo findo
amar fogos de artifício

Plaquinha perdida na multidão do estádio

Faz-me rir faz-me chorar
o futuro do país
repousado nunca quis
a esse futuro chegar

Tinha muitos outros planos
e no entanto aqui estamos
macambúzios, modernizados
e de novo condenados - a
rir, chorar, temer, gozar

Triunfo do caipira que acende a pira olímpica

Na piramba o passo para
para a piranga da pira
pero a peroba caipira
para a pira se prepara

pica a ponta da cueca
picaré para a piara
essa pica pura ampara
peão, piá, perereca

agora a pira prolonga
e para o povo o caipira
perambula e prevarica:

seja sua vara poronga,
mera piracanjuvira,
essa pica é pica olímpica!

domingo, 7 de agosto de 2016

ed è subito sera

Cada pessoa está só
sobre o solo terrestre
suspensa num raio de sol
- e a noite desce.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Novas histórias do detetive Cachorro

Eu queria ser escritor e virei escritor. Eu queria ser detetive e virei detetive. Mas eu nunca quis ser cachorro.

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Virei um escritor que escreve "nunca quis". Tudo bem, não quero ser perfeito. Nunca quis, rs. E um detetive bem medíocre. Quatro casos solucionados por cada dez investigados. Mas a pulga, no entanto, está sempre atrás da orelha.

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Ela entra no escritório. A fumaça do cigarro sobe do cinzeiro em torvelinhos pelo ar. Tailleur vermelho, chapeuzinho desabado, talvez preso com um grampo. Sou muito perspicaz. Ela me olha confusa. Eu paro de me lamber e digo: pode sentar, neném.

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Vou anotando no meu bloquinho. Sou um escritor sem medo do "-inho". E um detetive sem memória. Fala mais devagar, neném. Onde? Hm-hm. Calma, respira. Entrego o lenço pra ela. O broto acaricia a minha pata distraída, mas sensualmente, ao pegar o meu lencinho. Seus olhos úmidos me alcançam de uma distância longínqua. É, isso mesmo, "distância longínqua". Mas chega disso, detesto metalinguagem. O broto me devolve o lencinho com um suspiro de alívio e um pedido final. Depois, ajeita o chapeuzinho, a cadeira range ao se aliviar do peso da moça, e a porta range ao deixar passar o perfume doce da gardênia que desaparece corredor afora.

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Tranco a porta e saio para a rua. Mijo no primeiro poste que vejo enquanto penso: a mãezinha sumida, o armazém abandonado, o perfume de gardênia e essa cidade que fede a urina. Consolo o meu focinho com a pista concedida: a última calcinha usada pela mãe. Olho em volta, trânsito, pessoas apressadas. Esta cidade não é lugar para uma mãezinha se perder.

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Vou anotando no meu bloquinho as sensações que farejo no caminho. O armazém fica só a três quarteirões do meu escritório. Sinto um cheiro de emboscada. Mas nunca quis estar a salvo. Viver é muito, muito desconfiado.

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Passo por Dolores, o broto da floricultura. Olá, neném. Dolores sorri, indecifrável como sempre, e deixa à mostra a cornucópia de cores cheirosas que abraça a entrada do estabelecimento. Ah, se Dolores fosse uma cadela, o rabo levantado oferecido ao meu focinho úmido. Aperto a calcinha no bolso do sobretudo e respiro fundo: falta só mais um quarteirão.

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Os cheiros se confundem a cada passo. Preciso cheirar de novo a calcinha usada da mãezinha sumida. Aqui, nesse pelo crespo entrelaçado à trama de renda, mora uma metáfora poderosa. Queremos o caminho do útero, mas só temos vestígios porcos. Anoto rápido no meu bloquinho, senão esqueço. "Queremos o caminho do útero, mas só temos vestígios porcos..."

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As imagens de Dolores sorrindo, da cornucópia se abrindo e do chapeuzinho combinando com o tailleur se esvanecem quando vejo o galpão cinza e sinistro incrustado no centro de um quarteirão vazio. Guardo minha caneta bic no bolso do sobretudo e coço a orelha, um tique que tenho quando percebo que um caso vai se solucionar. Corro atrás de um rato que corre entre um bueiro e outro e que se assusta com meus latidos. Ratos, essas metáforas fugidias.

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O cheiro de gardênia se acentua na entrada dos fundos do armazém abandonado. A calcinha no bolso do sobretudo parece esquentar, na certa reluz no escuro da minha roupa. É um sinal de que a mãezinha está próxima. O lugar me traz lembranças sombrias de um lugar distante, longínquo na memória, do qual não quero me lembrar. O broto do tailleur vermelho de repente me parece muito, muito familiar.

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De costas para mim, sentada numa cadeira solitária em meio ao vasto galpão sombrio, a silhueta de uma mulher exala o cheiro que eu vinha seguindo há tantos quarteirões. Meu coração parece acelerar mais do que o possível. Um ganido toma forma de grunhido à medida que avanço em direção a ela. Senhora? Senhora?

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A mãezinha se levanta e olha na minha direção. É a própria moça do tailleur vermelho. Eu reconheço seus pentelhos crespos, porque a moça está nua. Que jogada macabra foi tramada pelo broto? Que papel eu exerci em sua peça de cartas marcadas e misteriosas? Uma gardênia azul brota insolente do meio do jardim de pelos da moça agora sem tailleur, e uma gargalhada preenche o espaço amplo e vazio desse galpão cinza, maldito, erguido sobre esgotos e ratos fétidos, fugidios.

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Eu nunca quis ser escritor. Nem detetive. Mas fazia tempo que eu queria essa coleira antipulgas que chegou agora pelo correio. A fumaça do cigarro sobe em espirais pelo ar. A distância mais próxima entre dois pontos é uma linha curva, infinitamente torcida sobre si mesma. O broto de tailleur vermelho bate na porta e pergunta se pode entrar. Embaixo dessa saia eu sei que ela está usando a mesma, tortuosa, calcinha. Eu digo: sente-se.
a limpeza

corrói com sabão os poros
cheios de limpeza, que bactérias
restam pra língua

? vontade de mastigar
esses mínimos lixos, mas a boca
chega ao gosto de lavanda
mães míticas de araque
esfregando a merda da fala dos meninos

agora eu vou vingar
cuspe amanhecido
enfiado em cada buraco

esses pixels não sabem
com sua luz de shopping

o esgoto da boca
dos que chupam

terça-feira, 2 de agosto de 2016


"O macaco como pintor"
Jean-Baptiste Siméon Chardin, c. 1740
ficar como os cachorros
feito só de expectativa e paciência
latir para os vizinhos quando eles passam sem aviso
e cagar a céu aberto
uma ruga de esforço entre os olhos

não saber das coisas cotidianas
mais do que o delas cotidiano
- memória plana e sem esforços
o que imagino dos cachorro

Tem passarinhos e gatos na vizinhança
incontáveis ratos nas frestas da cidade
esqueletos de macacos escondidos pelo asfalto

quem, dentre os que existem e os que não,
tem inveja da minha calça furada nos fundilhos de manhã
a enxaqueca que sofre por ser enxaqueca
além de pela dor crônica em algo que chamo de cabeça

será que o universo me olha
bípede, as contas no banco,
um teclado virtual com corretor automático em muitas línguas
e diz quem dera
ficar como os humanos
etc.