sábado, 27 de dezembro de 2014

"Acredito que o mal-estar atual – talvez um novo mal-estar da civilização – é hoje visceralmente ligado ao que acontece com o planeta. E que nenhuma investigação da alma humana desse momento histórico, em qualquer campo do conhecimento, possa prescindir de analisar o impacto da mudança climática em curso."

http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/22/opinion/1419251053_272392.html

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

calendário

Numa nave
este ano que termina
ganharia ou perderia
mais uns dias

a viagem
não começa
no ponto
de partida

ela gira
sem centro
em movimento
espiral

no vácuo escuro
do universo este ano
que termina não alcança
o seu final

mas nós
saudamos mesmo assim
o aceno do sem fim, por enquanto
o sol
o asfalto cruzado do seu
dia, homens de terno, volume
denso na calça, despojado você
desce a rua das horas sem nenhuma no
coração, agarra a caneta com
raiva e me dá mil motivos pra sair
por aí com as bolas à mostra, semeando
divindade ou desgosto, ao sabor do amor
paterno.
acredito certamente no poder criador do rock,
lambendo o suor no meio das pernas, mas
ponho atenção no trabalho que deu chegar nesse
ritmo
plenisfério, caduco
este mundo de avessos, de estrelas

fui embora e deixei a luz acesa

a ponta de terra se afastava e o resto era uma boca aberta azul-celeste, indistinta de horizontes, enquanto o azul me engolia / me foi dito na cama / o céu estava claro e teve tanta turbulência, é o tipo mais perigoso, não avisa em nuvem, breu
e de repente um revolto vento, o voo desastre no invisível

se o piloto era experiente?
aterrissei no chão que não treme.

~

vários fusos estes
nosso corpo é um globo terrestre?
o estado da vida é o jet lag

(limpando meu quarto, jogando os papéis fora, pondo o baú on-line, este deve ter sido escrito depois de voltar de portugal)

domingo, 21 de dezembro de 2014

História do vazio

bancos em flores e namorados no jardim, o vazio nasce entre formigas mínimas, sementes do infinito, e brota crescendo de pouco em pouco / o vazio vai engolindo as graminhas e as florzinhas e os animaizinhos, insetos depois pássaros e gatos e cachorros, a cavalaria da polícia, o vazio engole a polícia / e os namorados, e os bancos onde os velhos estão sentados, e os velhos com seus passados / uma sirene é acionada, mas o vazio engole o som e agigantado chega ao céu / o vazio engole o céu, e debaixo dele, e se espalha até que abrange o planeta e os planetas e a galáxia / enquanto houver matéria de qualquer maneira o vazio continuará crescendo / nos confins do desconhecido ele encontra a sua fronteira / e já não é necessário / o vazio se funde ao que não estava / e era impossível / e o esperava

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

algo / que não se sabe / bem o que é / entrou em frente / ao sol / roubou-lhe / a luz / sobraram / só / as sombras

Agora, tudo o que cresce no país tem um tom amarelo, não restam dúvidas, e todos os gatos são pardos. As fábricas de pilhas e as águas represadas ganharam notoriedade, as taxas de crime permanecem, na praça todos os dias os mesmos pregadores anunciam o amor violento, sanguinário, impiedoso do deus deles. Contrariando os pessimistas, o número de turistas aumentou, agora atraídos por essa terra escura e exótica, de brancos pálidos e negros invisíveis.

no family is safe

Don’t you know you’re queen?
Yet even flower bloom at my feet
Don’t you know you’re queen?
Cracked, peeling
Riddled with disease
Don’t you know me?

No family is safe
When I sashay

Don’t you know you’re queen?
Gleaning, wrapped in golden leaves
Don’t you know me?
Rank, ragged
Skin sewn on sheets
Case in the barracks
For an ass to break and harness into the fold


Mary

aproximadamente
desde o começo
da voz e do batuque
e da linguagem articulada

a
gente
tenta dizer
as palavras perfeitas
na ordem perfeita

e se estrepa

do mesmo jeito
que encaixar os dias
nos dias perfeitos
causou guerras e massacres
e comédias e internações em massa
e deu
na maior
parte das vezes
em nada

o acaso
ou deus
o que dá no mesmo
escrevem torto
por linhas grossas
como o amor que o meu pai não sabia expressar
e que era ódio e está morto
e era um grosso

tudo torto

assim
assino o meu contrato de resignação
num dia em que inundou-se
a avenida e eu fiquei
com a água nojenta pelas canelas
encharcando os meu tênis
as moléculas dela interagindo sabe lá de que jeito
com as moléculas dos meus
pés

galera,
os dias e a linguagem
são uma sala de espera

aproveitemos o tempo
que nos resta
o corpo às vezes

abre
pra dar
caminho ao sangue

pense
que tédio deve ser
empurrado o tempo
todo
por um músculo
indiferente

ao que o líquido pretende

um risco
na pele, uma queda
de joelhos, o sangue
desaba

sobre os medos
de vírus bactérias
que entram a criança
que eu fui

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

nenhuma roupa me serve mais

então
eu devia parar de comer
toda a gordura
que os outros animais deviam parar
de morrer estaríamos
todos vivos e
vestidos
sem espanto dos amigos que diriam
nossa
você está magro
e bonito
e cheio de amigos
cabritos e vacas e pintos
correndo entre as pernas não seria
lindo
poder
ter esse tipo
de conversa?

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

the man i love

Um prédio de todos os andares, os carros a janela passando lá embaixo trazendo sons de ida e vinda aqui pra cima, e os homens recortados no site do outro lado: em camisas, sem camisas, se eu medisse todos os pênis desse prédio a altura alcançaria? Toma chá agarrado à cortina, crequelenta de semanas de porra seca, precisa lavá-la. Depois se veste e desce e anda e verbos até que dentro do escritório, de novo e sempre a rola dura apertando o coração, querendo escapar de calças e cadeiras, das horas de almoço, no escuro do cinema entrando em bocas e bundas e conchas de mãos, o amor é um picadinho, um chapéu na cabeça umedecido da garoa, vapor de virilha subindo e ofuscando a visão, volta pra casa, um casarão, para a esposa e os filhos e as cortinas, sobe nela uma vez por ano e se alivia quando engravida, medo nos becos, nos parques, na cidade que se acumula sobre si como um prédio de apartamentos cheios de picas moles dentro. Então acorda e bochecha a água branca e corre para a redação e datilografa o que chega da coluna policial, e não responde às brincadeiras e sai e encontra o cara do site e fode e volta resmungando "The man I love", dorme entre os irmãos na esteira sobre o chão e sente pressionando entre os quadris essa canção desconhecida, não sabe uma palavra em língua inglesa.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O número de mortos cresce exponencialmente e ninguém mais consegue calcular. O governo lança um edital de contratação destinado a suprir o déficit de funcionários responsáveis pelo departamento de contagem de mortos. Mas o número necessário de novas contratações é muito maior do que o número de pessoas vivas na população. É que morre muita, muita gente. Então o governo emite um decreto em que obriga cada recém-morto a comparecer ao cartório mais próximo, emitir duas vias de seu atestado de óbito, sendo que uma fica consigo e outra deve ser depositada numa caixinha dourada. Quando o morto não comparecer no período estipulado, um juiz poderá acionar a força policial para constrangê-lo, se preciso utilizando violência física. O número de policiais cresce exponencialmente e ninguém mais consegue calcular.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

As ruas da cidade cobraram vida e resmungavam a cada passo ou roda de automóvel, raiz de árvore que saltasse da pele, e gritavam e choravam e xingavam tanto que fomos pouco a pouco saindo em direção ao campo, caravanas, onde o chão não nos negava e conseguíamos dormir, de algum modo sempre sobre ele. Mas então os arbustos e as gramas e toda planta nos quiseram expulsar, e fustigavam com os galhos e davam frutos que envenenaram nossos filhos e urticárias nos narizes, nas solas dos pés, até que nos venceram e nos juntamos e fomos em direção ao mar. À beira da praia vivemos muitos anos entre areias e cocos, conhecendo peixes e moluscos, cabelos salgados, até o dia que o mar abriu suas bocas de onda e, sem aviso prévio, nos tragou.

domingo, 7 de dezembro de 2014

por milhares milhões por
séculos as árvores não tinham
organismos que se alimentassem delas

depois de mortas empilhavam-se
umas sobre as outras
idênticas a si sem decomposição

se uma árvore cai na floresta
há bilhões trilhões de anos não há
ninguém para ouvir sua queda

ela faz algum barulho? aquelas
renascem hoje nossa busca por pedras
e fósseis previsões de futuro

para morrer não basta
estar vivo é preciso
deixar

ruídos
ruínas
vestígios
deus
deposita sobre o chão
moldado em pedra e sopro
prédios e outras construções
cidades cada vez enormes

a confusão dos idiomas
não bastou como vingança
sereis eternamente condenados
a babéis horizontais e quedas

vossas esquinas serão prisões
o solo não abraçará vosso cadáver
disse deus na segunda pessoa do plural
quando ficou bravo com os homens

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

a cidade vai ficar pronta
enquanto vocês dormem
podem ir

sonhei com esses versos, que eram cantados em forma de mantra ou refrão pop, vindo de lugar nenhum que eu me lembre. outra vez, há vários anos, sonhei com estes outros (dessa vez na boca de um cantor):

eu não quero alguém
não preciso alguém
eu não sou rural

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O jardim das plantas ordinárias

fôssemos todos
nós a tempo todo
felizes e presentes
entre as pernas e as
esperas o jardim
das urticárias e das plantas
ordinárias se
esfacelaria
entre os olhos

peço
um pátio vazio
um terreno baldio
onde o mato
cresça
ao contrário
dos desejos
e por isso mesmo
o chão
floresça
inteiro

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Engulo
o sêmen composto
na próstata de líquidos
vários

de pus e de esperma
e restos de urina
o que amo se forma
do lixo do corpo

atravessa a memória
e dutos de baixo
do avesso da boca

o afeto produto
é nojo e é gozo
e engulo

receita

eventualmente
eu deixo
de tomar os remédios que me mantêm
com diminutas taxas de vírus contáveis e vivo
por um tempo
inestimável, por isso mesmo
difícil de desejar

o médico profeta
novas cepas desses microrganismos
mais resistentes à química que outros primatas
como eu mas
vestidos de jalecos e carros em laboratórios
inventam e batizam e transformam em
patentes, evoluindo resistirão
a tudo o que de mais avançado a medicina tem
a nos
oferecer

então
um medo
de nada que eu enxergue se cola
à curiosidade de ver
o que virá de amanhã
em diante, e obediente
aos desígnios, aos inimigos, eu tomo
de novo todos os
comprimidos

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Eu abro a janela no dia seguinte
ao assassinato de Zumbi dos Palmares
e vejo os matos que crescem
nas frestas do meu quintal cercado de paredes
se moverem no vento e os meus cachorros
vêm me saudar antes de irem
latir pra algo que não vejo

Não sou nenhum desses elementos
nem o polígono de céu que transborda entre os varais
mas estamos tão próximos que eu me sinto
um pouco fresta, um pouco matos
vento, parede, cachorro, invisível
meio céu, meio polígono
um pouco herói
um pouco assassino

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Acumuladas, as pedras
na minha vesícula são lidas
por um laboratorista de traços
monásticos do oriente que me diz
do limitado tempo da vida

e dos perigos em silêncio
no silêncio do fígado uma cirrose
no futuro da gordura acumulada

Anuncio,
aos parentes e aos amigos,
minha morte está marcada
chorem agora vocês podem
que a de vocês está também

nas runas que o oráculo
do aparelho de ultrassom torna
em ruínas, meu corpo
cospe a imprecação dos médicos
avalanche e diz que venha
o que vier

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Com local

Quantos pés são necessários pra que o chão se rompa? Quanto chão é necessário pra sustentar plantas cemitérios sete bilhões de pessoas dois hemisférios e um número de espécies em declínio antropoceno?

Minha mãe morreu. Quando voltei pra casa, aquela caverna em silêncio inteira agora só pra mim, a televisão os bibelôs tudo esperava o pó que cairia. Metade da vida é limpeza, a outra metade é retorno da sujeira. E eu não teria mais a desculpa da enfermeira, dos horários dos remédios, da troca de fraldas periódica. E da mãe ali, totêmica, viva por insistência, impedindo a passagem dos homens. A primeira coisa que ele fez foi entrar na internet, o ano é 2001, hxh c/local 1m71 bco olh cab cast claro 43a atv liberal. Virou a casa mais animada do quarteirão, sendo que ninguém podia falar nada, porque a propriedade era privada e depois das dez da noite ele se trancava e via filme dublado.

Uma noite de sonho as rodas da cadeira rangeram. Era a mãe que voltava. Pálida, cheia de terra e vermes na boca. Ele a chamava de "senhora". A senhora está bem? Todos os mortos se levantavam e voltavam pras suas casas. Reuniões de cúpula do governo demoraram dias e não decidiram nada de expressivo. A mãe era morta como em vida: silenciosa, presente, assustadora. E de novo exigia cuidados. Tantos que ele próprio não se conteve e se enforcou pendurado do lado de dentro na porta do quarto. Depois de ter tomado banho e guardado seu corpo em roupas limpas. O corpo, esse gigante discreto.

Os dois cadáveres viram do sofá da sala os aviões se chocando contra as Torres Gêmeas em Nova Iorque e se abismaram muito. Este é um mundo difícil para os mortos. A mãe já era praticamente só crânio e cabelos ralos caindo. O terceiro milênio, no calendário dos cristãos, nem bem começava e já trazia tanta tristeza para aquelas famílias em Nova Iorque.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

uma rodovia chamada raposo
aqui do lado de casa
hoje andando nela
com meus dois cachorros
vi um gambá entre as grades do condomínio
primeiro pensei que fosse um rato
tão comum quanto os carros
mas escondido
mas depois reconheci
dos livros de biologia
um gambazinho

querido gambazinho
sem me aproximar
com medo de ataques fedentinas
os cachorros alucinados
com a luz dos faróis
nem perceberam
mas estávamos
no que dependeu de mim
em tal momento de comunhão
mamífera

os caminhos da evolução
dispersos em algum momento
você subindo na árvore
os cachorros de pescoço na coleira
eu o maior animal
daqueles cinco metros quadrados
de mato coberto de fuligem
jardim da rodovia
com nome de assassino

também ele era um mamífero
queridos irmãozinhos
caminho evolutivo

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

lendo o poeta que ninguém leu

cheguei
meia hora atrasado no trabalho
com desculpas de vazamento no banheiro
e carta problema meu nome no serasa

agora olho as mesas vazias
da redação depois que as revistas todas fecharam
e escuto outros colegas
falando de política de um jeito que desprezo
enquanto isso fico lendo
o poeta que ninguém leu

e que morreu anônimo
e teve uns versos resumidos
pelo garimpo dos parnasianos de hoje em dia

nós
inconformados
com a sobreposição dos estratos minérios
que nos veem como partículas de minérios
e não como seres complexos que amam odeiam
cedem seus corpos aos patrões e pensam em política
em poesia e no serasa

que ninguém me leia nesta vida
não importa
os ossos e a carne de eróticos a erodidos
vão ser lidos pelos átomos
de um planeta cego
imenso glóbulo

Papai era um monstro

lembro bem do dia em que descobri
que papai era um monstro

#

a cama dele tinha quebrado no meio
e o colchão estava esmagado no chão

#

os sapatos eram cortados nas pontas
por onde saíam os dedos dos pés monstruosos

#

a escova de dentes era muito grande
e dela pingava uma gosma verde

#

fui juntando todas essas pistas e descobri:
papai era um monstro

#

à noite era muito perigoso dormir
porque ele podia abocanhar minha perna

#

então eu fiz uma armadilha pra ele

#

papai ficou preso naquela arapuca
e não conseguia sair

#

todo dia eu sentava na frente dele
dava comida e escutava ele falar coisas medonhas

mas ele não conseguia me alcançar
com sua boca e suas garras

#

muitos anos se passaram
até que eu resolvi soltar ele da prisão

#

hoje, papai está bem mais manso
e eu, que cresci, também virei um monstro

#

todas as noites a gente janta junto
e cada vez é um que cozinha e lava a louça

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

a bola de neve do demônio

Uma sombra passou diante dos olhos e foi sugada pela distância. Quando olhou pra baixo, sua sombra não estava mais ali. Saiu correndo atrás daquela que pensava ser ela, e que devia ser, porque todas as pessoas têm suas sombras presas no chão, grudadas nas paredes, nadando diluídas na água. A luz do sol alto queimava os prédios e o asfalto. A sombra fugida era veloz e nunca mais foi vista.

Todas as sombras passaram diante dos olhos. Como se um ralo aberto de luz tragasse elas. E as pessoas correram atrás de suas sombras e se amontoaram nas esquinas, várias morreram pisoteadas. Notícia que não daria em nenhum jornal. Os jornalistas, correndo atrás de suas próprias sombras, não compareceram às redações. O dono do jornal estava em sua sala acolchoada e não percebeu nada.

Ninguém é mais rápido que a escuridão. Nem eu. Em algum lugar incógnito, as sombras de todo o mundo se acumulam, se amontoam e formam um novelo escuro e crescente. A bola de neve do demônio. Que vai nos soterrar quando estivermos, dia claro, procurando no chão a noite que vem do alto.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

escola da vida

mas o pior de tudo
é quando você percebe
que há fatos e pessoas movendo-se
em torno uns das outras
e te deixam no canto da quadra
sem a bola sem amigos
esperando dar o sinal
de volta pra sala

as coisas acontecem
e são acontecidas
mas nem sempre os meninos
querem você por perto

criança eu inventei de um dia
conversar com as formigas

elas não paravam pra ouvir
e ainda assim meus primos riram
me repreendendo dizendo que o que eu fazia
era coisa do demônio

tentei escrever um poema que transformasse a realidade e não deu certo

é triste quando você não consegue
dizer o que pensa
e ao dizê-lo mudar os fatos
e ao mudá-los melhorar as coisas

que talvez nem possam
ser melhoradas e os fatos
não possam ser mudados
e os pensamentos não possam ser ditos

então não deveria ser triste
porque bem dizia a minha avó
"o que não tem remédio
já está remediado"

as coisas os fatos o pensamento e as palavras
tudo remediado

Canção de ninar o desespero

É mais fácil imaginar o fim
do mundo e da água
e dos pandas
da paciência

do que o fim do capitalismo
e das paixões pelas bandeiras e
do asfalto impregnado
no chão no coração

é bem mais fácil
que tudo isso
passar pelo fim da vida de indivíduo
corpo nome
tanta gente já passou
sem que o mundo
a grana
os ursos pandas
acabassem

Dorme, criança
enquanto houver saliva na garganta
enquanto a cruz assombra
os pesadelos com caravelas e navios negreiros
soberanos nas fronteiras

Dorme e sonha
com a cara gorda de um panda
finado, macio, companheiro

Depois acorda

sábado, 1 de novembro de 2014

raquel não ansiava por casar-se
quando ofereceu água ao homem e aos camelos
como ia ela saber que era servo de abraão
e que sua generosidade e até presteza em dar
de beber a um estranho eram sinais
plantados pelos anjos para que sua família
a entregasse em viagem matrimônio a isaque?

também eu não ansiava ser
solteiro nem casado nem tampouco
chegar aos trinta anos convicto
da minha homossexualidade vacilante e num estado
da república federativa onde é iminente
a crise hídrica

se vir camelos e um homem
na rodovia raposo tavares com túnica
sedento certamente oferecerei a eles
a água que for possível

mas os sinais dos anjos do senhor
mudam a cada momento só a sede permanece
a mesma através dos estados civis e do tempo

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

você
sobe as escadas da casa ao lado
com pernas que foram moldadas
pelo tempo e está próxima
da morte porque o tempo
toma o que dá

eventualmente se encherão
de vermes esses músculos
magros cujo contorno aparece
movendo a pele que eu vejo
entre os seus pelos

cadela
de vida que dura
um sexto do que se espera da minha, você
sobe as escadas
da casa ao lado e me mostra que ainda
não estamos podres
se podemos
ser vizinhos
e nos ver, de vez em quando

terça-feira, 14 de outubro de 2014

falésia

Não tinha uma linha oculta que trouxesse aquele corpo à pedra presa ao corpo do planeta e por isso fixa, enquanto o outro amontoado de matéria se diluía na distância, debatia-se ossos se expondo o vermelho pálido na espuma salgada do mar, a gente ficou vendo sem mãos que salvassem ninguém exceto a gente, presa no ar nos próprios pés, na sorte de não estar se afogando triturada num abismo próximo de quem nada pudesse fazer, é sorte. Ou a sorte outra, de virar aos poucos paisagem, dispersão não deve ter angústia, medo, desejo de calor de um corpo frio e morto, alimento de peixes de gaivotas e de gentes que comam peixes e gaivotas ou se alimentem dos animais que se alimentam desses, não é sorte a palavra. Minério, átomo, movimento sem começo, inércia e carbono acaso programado pra fugir do que ameaça, pra englobar o seu carinho e assim continuar, ele mesmo ou outro, vivo vivo. Preso à rede de linhas ocultas que nos prende ao tempo escuro, nenhuma delas livre ao contato da extremidade de um braço aberto em mão, em dedos que se agarram: à água, espatifados, a eles mesmos.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

quando a cabeça
viu pequenos os pés
ficou tão impressionada
que deixou de ver
a distância de ar e tempo
que existe entre olhos e dedos

como os dentes, juntos
e os pelos nas narinas, crescendo
pretendo ser inteiro
distância entre os átomos
e células grudadas
um corpo cada vez
mais distância e densidade



quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Nasci hétero e desinteressante e não me lembro
se feliz ou nunca quis
nascer teria ficado comprimido
afogado no líquido quem diria amniótico
sem lembrança de amigos e amantes e adultos
na igreja cantando vinde meninos vinde
a Jesus

hoje continuo
sem interesse por mim mesmo
e escutando em
pesadelos aquele coro de túnicas
vermelhas se dizia a paz de Deus
que enchesse o templo

e sou hétero
no sentido
mais estrito de ser outro
ou nem isso e nem eu mesmo
nem a ponte de um ao outro
nem o tédio nem o pilar
que segura tudo aquilo fico
vendo a distância
o dia em que a matéria resolver
acabar e aí espero
um sumiço

que o interesse
não tivesse
nascido

terça-feira, 7 de outubro de 2014

I hear my voice among others

quando
o menino vê
que há uma calçada
do outro lado, ele corre
pra alcançá-la
ainda
que chegar não seja
um ponto de chegada

ele
alterna as pernas curtas
em passos que o encaminham
para
um destino longe dos meus olhos
e dos olhos dos meus cachorros
atentos, tanto eles quanto eu,
aos estalos provocados
pelo trote de um menino
indiferente à irrelevância
de correr
por diversão

então meus cães
indiferentes também eles
à tristeza
com que eu olho o menino
ir embora
põem-se a puxar
meus braços atrás
dos seus focinhos tão curiosos
e urgentes
como as pernas
dele

*

é urgente
respirar e é urgente
beber água e excretar
o que o teu corpo não
precisa ou digere, é
urgente que eu me encontre
entre a criança e os cachorros
prestes
a completar
trinta anos de olhos
pernas de corpo
e de nome, ricochete
entre as urgências
de outras pernas de meninos
de desejos
e cachorros, é urgente
que estes trinta, testemunhados
retornos do sol
em cima
encontrem
o tema de uma vida
entre carros e urgências
e meninos e
animais amarrados à coleira ao alimento
e aos rabos que abanam
irrelevantes e atentos
quando eu chego

*

entre os agasalhos de lembrança
da família e o salário recolhido
das feridas e os remédios ofertados
pelo programa nacional
de combate à aids

entre os livros e os beijos
e a poeira e o medo e
as frieiras e os conflitos

o dia racha
espaço pra nascer
o abismo raso
dos cachorros
o trote solto, ignorante
de um menino
e eu me encontro, perdido
entre eles
puxado de um lado para o outro

entre o futuro
a gravidade
as notícias
e a morte

entre os cachorros
e a empresa
e a família
e o desejo
de ter um filho

*

que todos
os bichos corram
sem ter onde chegar

e que ao chegarem
se esqueçam
do caminho que fizeram

e que respirem
por urgência
sem vontade de saber

(quanto menor o coração
mais depressa ele se move)

e que o destino feche os olhos
e deixe-se levar
pelos cachorros

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

da mesma terra que é terra há tanto tempo
nasce um mamoeiro igual a outro mamoeiro
que dá mamões que eu não alcanço igual criança
no tempo em que as árvores eram grandes ainda são
precisava a vó avançar os dedos para a fruta
cortá-la e sem sementes dar aos netos com açúcar

as árvores crescem eu cresci menos a vó
e hoje ninguém alcança o doce verde
amadurecente e a gente vai apodrecendo
ao ver as frutas comidas à noite por morcegos

ó céu cuja gravidade puxa a fruta antes que caia
segure a queda da avó de cima da escada
e traga ambas a salvo, ela e a fruta,
açúcar de infância e fibra precisa na vida adulta

ó chão que transforma o mamão em massa sem doce
receba o veneno que eu tenho correndo na seiva
gentil me devolva ao momento nascente primeiro
da semente em altura em memória - em mamoeiro

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

não chama que ele vem

o fim do mundo o fim do mundo

mesmo sem carro, vem de trem
e se não tem, manda buscar
de cavalo ou de avião
os quatro marechais do ar
em meio à greve
ao piquete
fura o bolo
mata o piolho
e ele vem o fim do mundo

está aqui atrasado
pro trabalho pro salário
fim do mês e não desiste
de chamar o fim de tudo
ou de pensar nos comprimidos
no amor morto perdido
o fim do mundo o fim de tudo
ele vem ah ele vem
não chama

e vai chegar
derrubando tudo quanto
é prédio é ponto é parideira
pato rato trepadeira
ele vem é uma promessa
não chame incomode
o fim do mundo o fim do mundo
ele vem

terça-feira, 16 de setembro de 2014

minha mãe dizia
que o ovomaltine era caro e sempre
tinha sido

quando na infância dela os crocantes
se quebravam nos dentes
que formariam um dia os meus,
o mesmo leite
achocolatado correndo no peito
meu e da minha mãe

e os preços
flutuantes do mercado a inflação
financeira da marca guardada
feito um afeto independente
de brigas e salários e derivados do petróleo

apenas
em ocasiões especiais ou de auto
indulgência é que podemos
mascar o doce como se fosse
a vida uma infância
gostosa, marrom, diluída

quarta-feira, 30 de julho de 2014

queria um contorno desaparecido entre as palavras e os corpos
e as bombas que jogam e o chão em que caem
os poucos que buscassem saudosos o contorno logo esqueceriam
contemplando as cores largas mergulhadas na matéria livre
aí o anseio
insistente de não viver
o dia ao contrário poderia naufragar
docemente como num poema italiano que a lembrança
não aparece mas que eu lia e me fez
uma vez sentir assim

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Cava
no tempo um caminho
e constrói um túnel
chamado vida

exposto
ao subterrâneo
origem do escuro
rede de esgoto

aberta
às luzes do dia
pelos bueiros
do saneamento

deixa
que o cheiro ventile
entre a merda e os ratos
chama-a de casa
Regrida ao útero e conte
o correspondente do que em mim é hoje
saber a própria dúvida

quando o acúmulo
de mucosas começava
úmido, possível, placenta

então retorna e ensina
a resposta anterior à pergunta
o desejo dormente da vida

terça-feira, 1 de julho de 2014

Pergunta

no mínimo da pedra da estátua
um som se produz pelas partículas
e ecoa no meio do movimento
de elétrons prótons e nêutrons

se o vazio da pedra é o mesmo
que existe entre as células líquidas
que percorrem meu corpo enquanto
eu penso na morte da matéria

existe no duro da estátua
um vento de dúvida igual
ao que me sopra através da vida?

e eu tenho guardado no meio
orgânico corpo agitado
algum pétreo, pacífico, silêncio?

sábado, 28 de junho de 2014

As paredes desconhecem
o que guardam como o corpo desconhece
o que se move dentro dele
e não é órgão nem tecido
nem célula vírus ser vivo

Desde o início
da atribuição de sentido
descrito como um sopro
ou um fogo divino
anima esse monte
de carne e de osso
precário

Perambula entre os músculos e escapa
aos toques e aos testes a que
lhe submetem

Mas também as ruínas
foram um dia paredes e contam
na imagem de muro conservada
seus antigos moradores, erro orgânico
guardado das adversidades
de fora

Se investigo a vida e chego
à imagem de um átomo
não traz do mesmo jeito
histórias construídas
de alma e tijolo

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Percorro o seu corpo como
pensei percorrer o mundo

como um barco navega águas
ancoradas no profundo

naufraga como uma pedra
pois isso é o que ele era

Percorro o seu corpo como
pensei percorrer o mundo

um cóndor visto de baixo
não parece comer cadáver
sem rugas nem cheiro longe
é asas, palavra ave
ninguém olha os piolhos
que povoam o seu corpo
assim hoje eu te percorro:
como os piolhos de um cóndor
Quem sabe encontrar as pessoas
seja um destino desses não se escapa
mas podia muito bem viver sem
dizer não
até morrer no quarto sozinho
em volta barulho de carros vizinhos
amor de mãe em outra cidade
todos os pés que as mãos já encontraram
indo em círculos porque o planeta
afinal uma esfera

e um ponto parado se nega
digamos que não acompanhe
galáxias e átomos e tudo que há entre
e a antimatéria passe por ele
dissolvam-se desejos sensações
digamos que não tivesse no começo

carne, terra irrigada de tempo
impossibilidade de avesso
nas pontas uns duros limites de si mesmo
mas frágil que seja guardada
forte que seja exposta
coberta de dúvida e móvel
na escolha, invólucro de um nada quebrado,
respiro do mistério, quem sabe

amar outra pele seja
a única forma de saber-se
Quem sabe o cérebro
seja oco no dentro do dentro
e assim todas as células
com os prótons e os nêutrons girando
microscópico o líquido não seja seco
nem molhado
e nós não estejamos entre
as partículas que não se tocam
e nesse vácuo ande a alma buscando
a matéria sem nunca encontrá-la
fixa que possa agarrá-la
o mínimo em movimento acelerado
desse desencontro a consciência
e os sonhos reluzem
produzissem-nos duas pedras que se chocam
quase sem chocar-se fogo

domingo, 15 de junho de 2014

Não tem caminho livre
que leve sozinho os pés
se você quiser tem que correr
por fora contentar-se
em chegar onde puder talvez querer
mais mas os pés ficam
gastos se jogue se arraste
alcance o possível
no braço

Equívoco quem disse
"o caminho se faz ao caminhar"
os olhos adiantam
o nariz chega na frente
tetas pica ou barriga
diferente cada anatomia
os joelhos cadeirante sem mexer
as pontas dos pés assinalando
o caminho acontece
sem a gente perceber


quarta-feira, 16 de abril de 2014

Risco atrás de cada porta
um quarto acordado espera
a fossa a fera agarra
a foice e corta o sonho
dos fãs da banda morta
véu de vinil a noite
do não saber

Asfalto com pressa o carro
tropeça nos ossos que leva
dentro contra o que
querem a noite não
sabe o que esconde
enterra atrás dos olhos
que dormem

Caminho na treva da lâmpada
acesa de insônia silêncio
gritando lá dentro um cachorro
devora os restos do corpo
vivo mutilado decomposto
semente de noite que brota
cada rosto
a noite é um
bicho dentes
mastigando o
pescoço do
dia que eu
sou até que
a noite seja
mais

eu e crie
dentes bicho
que masque
a artéria do
dia de outrx
garganta
tudo etc
noite

domingo, 13 de abril de 2014

processo criativo

queria que cada bloco pudesse ser resumido num número de páginas meia dúzia de links "taí o que me aconteceu de 2011 em diante" fecha a conta passa pro próximo bar, um garçom cansado atende os pedidos a esta altura eu já tenho outra vez

sede e fome, começa tudo de novo: os sabores os porres, lidar com a conta, encontros, amigos e bêbados inconvenientes, uma chuva nos prende debaixo do toldo que cai e os baldes com a água pra fora amanhece sabão escorregando os nossos pés,

no bar todo caso é igual, meu caso é mais um, é banal

mas preste atenção por favor: então digo outra vez "taí o que me aconteceu desde", completa datas e outra partida, mesa, esquina

*

deus me livre das lombadas dos códigos de barras do anonimato do clube de leitura do prêmio quelônio do dinheiro dinamite de ser reconhecido na fila do mercado de ser encontrado semidecomposto num quarto solitário comido pelo gato indigente cercado de parentes da tristeza perpétua da vontade de viver de ter muitos amigos de não os ter ganhar biografia direitos autorais esquecido pelas traças do banco de dados dos homens do tempo de continuar aqui agora pra sempre escrevendo de não ter o que escrever amém, seja o que for, amém

*

quando descobrir
outro planeta
a sucessão de letras
pra que serve

vai se sentir
um tanto tonto
"ah era isso"
"se eu soubesse"

fecha a conta
bate o ponto
não paga e some

dos desejos
e de todos
os outros

*

enquanto isso
mais ou menos
sete bilhões de pessoas
estão vivendo

segunda-feira, 7 de abril de 2014

A noite do não saber

Se ela desse um nome ao bicho, chamaria de Rigor. Todo ser humano tem direito a um nome, felizmente os bichos não nos conhecem, passam a vida sobre suas patas com o focinho à frente, ao menos grande parte deles, e nenhum é muito rigoroso a não ser com seu próprio acaso, traçado longe da gente. Aquele morreu antes do nome. A dona, que não era dona de mais ninguém, talvez de si, após chorar, concluiu que precisava de outro gato, antes que precisava enterrar aquele, antes que não adiantava dar um nome - e tão original - a algo que não atenderia, e em algum lugar no meio pensou: mas pra que qualquer coisa tem um nome?

Chamou-se à noite pra ter certeza de que ainda estava ali. Num apartamento só dela, entre paredes que ao breu não importa o quanto estão decoradas, fecha os olhos e subtrai-se não importa muita coisa, uma boa noite de sono, Clara. Chama, sussurra de novo. A quem responder se é só você? Perdeu-se no sono e depois amanheceu e voltou a anoitecer, ela insistentemente viva, tão sem gato. Pano rápido, novamente um colchão, a cidade lá embaixo sem controle, ouve chamarem-na no escuro era seu pai, um grande gato amarelo e gordo, imóvel confortável, prendendo-a sob a pata macia o rosto dela, um susto acorda. Vai cair do prédio, vai mudar, vai seguir vivendo ali com muitas outras histórias algumas permanecem, sucessão de amanheceres, um dia seu nome na boca de outro, deixe o gato descansar em paz.

domingo, 6 de abril de 2014

Laços de família

Essas eram as coisas que eu tinha na minha casa:
um gato e sapato
um cachorro bobo
uma vó cheia de dó
um vô dizendo alô
uma mãe um mamão
um pai um ai
teto parede comida roupa
cansada

*

Dormiu abraçado no sapato do pai depois que morreu, o pai, tinha vários sapatos, tirou-os do armário, escolheu um bonito, preto, grande e brilhoso. Beijou, lambeu, chorou, dormiu. Sonhou que o pai andava descalço no céu. Sonhou com a frieira do pai doendo na garganta. Sonhou com chutes gostosos na virilha. Sonhou que calçava aquele sapato enquanto a terra caía, em pancada, sobre a tampa do caixão.

*

Encoxou a mãe no tanque. Bateu na mãe por causa de mistura. Vendeu até a mãe. Jogou ela de perna aberta. A mãe rolou morro abaixo. Ficou sozinho na casa olhando o cadáver da mãe decompondo lá embaixo. Entrou em casa para tomar café, agora não havia quem fizesse café pra ele. Pensou em casar. Isso sim resolveria o problema. Desceu o morro, pôs véu e grinalda na mãe. Núpcias, vermes, felizes, para sempre.

*

Meu irmão é treze anos mais novo do que eu. Eu tenho vinte e cinco, ele tem doze. É nessa idade que começa. Enquanto ele dorme, desvisto ele, finge que dorme, fico molhada ele duro, pequeno, entra. No dia seguinte seus olhos baixos. Mostro os seios quando ninguém mais estiver vendo. Ouço ele chorando de noite quando abro a porta. Repito. Chorando, endurecendo.

*

Aquela é filha de chocadeira. Xs vizinhxs comentam quando sai de sainha e anda a rua. Desavergonhada, a própria esquina de casa. Entra no quarto carro que para. O gato dorme sobre a cama. Me conta de você. Perdi meus pais faz seis meses num acidente de carro. Ele mete, ela recorda. Tá gostando? Não mente: tô. Quando volta, o gato acorda, tira a roupa, deita na cama que era dos pais. É, até que tô gostando mesmo.

*

Agora faça você mesmx: conte quinze histórias de afeto inocente. Satisfaça-se

quinta-feira, 3 de abril de 2014

como eu, inúmeros, todos com dedos
esmagaram formigas na mesa
ou no chão que por maiores que sejamos
nos apegamos como elas, e elas
como nós, continuam
aparecendo não se sabe de onde
animais povoando-se mutuamente
a vista, o medo, a morte

que companhia a nossa

tão juntos e diferentes
ora afeto ora irritados com os efeitos
que acontecem
ou poderiam acontecer
entre as espécies, sujeiras e doenças
a casa esburacada não queremos
compartilhar com mais ninguém

no entanto, penso, matando-as
percebo como deve
ser pro tempo olhar pra gente
à mesa caminhando sobre a terra
esmagados igualmente por seus dedos
depois indiferentes ressurgindo,
um só animal que prolifera

domingo, 30 de março de 2014

potencial de destruição em massa
guardado dentro do corpo
um espasmo que matasse num ônibus
pessoas acionadas na bomba

sociopata silencioso infectando
de aids dez homens por dia
sem registro uma década epidêmica
contra o sistema único de saúde

atirar no metrô lotado, quantas
pessoas derrubar nos trilhos
plantar pânico em cada consciência

do que é capaz a raça humana
existe algo disso em estar em silêncio
sozinho, no meu quarto, escrevendo?
toda vez que algo vermelho
e líquido escapa da minha pele
de cheiro ferrugem e coagula
uns instantes depois inofensivo

numa ferida pequena coçada
minha própria unha sem querer
uma picada de pernilongo ou então
um pesadelo acordo e me abri

no rosto embaixo do nariz
um talho no dente que me morde
enquanto como algo que gosto

digo olá pra células e vírus
de vida curta em contato com o ar
essa parte involuntária de mim

quinta-feira, 27 de março de 2014

PARTIR DE UM PONTO
QUALQUER NA RETA
A PASSO TORTO
ESPERA UM MARCO ZERO
DIZER AGORA
SIM
COMEÇA AQUI

Todo dia
O sol retorna
E diz meu chapa
Agora é hora
Não tem mais volta
Só eu que volto

Brilhante
Idêntico
Seguinte

Enquanto a gente
espera um marco
zero dizer
agora
sim começa
certo

perder
a ponte a passagem
e ter que seguir
cego até dar
de frente na parede ou cair
no buraco ou tropeçar no fio de náilon
estava lá no seu caminho
desde quando estiveste dormindo

ou seremos sonâmbulos?
Morre e acorda andando

caminhante
o caminho se faz
e será o bastante
caminhar? E será
um marco zero
o que no fim
encontraremos será
um começo?
E será perder-se
este corpo
traçado
em mim feito um mapa
içado em mim como bandeira
na areia perante

um deserto azul?

quinta-feira, 20 de março de 2014

que cada
madrugada traga
um cacófono uma
rima rica que desdiga
esse sono
sonso essa preguiça
de contar as novas

ovelhinhas
quero elas
lânguidas
labaredas
luxuriosas
lingerie de
lobo



segunda-feira, 17 de março de 2014

2001

vejo um monte de velhos barrigudos
editando garotos de guitarra
dedos de pus e ternos
no centro do mundo sem centro dinheiro
no caixa e crises
prédios explodem
tédio ejaculado
com manchas na camisa
comprada na promoção
pela minha mãe

domingo, 16 de março de 2014

sábado, 15 de março de 2014

se a vida fosse um cachorro
que rabo
abanaria pra dizer
bem-vindo ou
pegue aquele osso
e jogue-o pra mim se a vida
passar antipulgas levá-lo
em passeio à próxima praça
onde vizinhos reúnem suas vidas
e as põem pra brincar
umas cheiram
os cus das outras
mordem-se e ficam
de barriga
pra cima pra dizer
você é quem manda se a vida
me dissesse isso com a língua
dez palmos
pra fora da boca
eu a poria na coleira
e levaria de novo
pra casa?

sexta-feira, 14 de março de 2014

tóxico trivia

menino bonito
com câncer no ouvido
morre e vira
quimioterapia
na natureza
moço com aids
quanta química
eu tomo dará
depois de excretada
pro mundo pesadelos
como os que eu tenho
homem no sonho
pai morto de câncer
quanto tempo até
que
os cabelos caídos
atômicos cheguem
na matéria acordada
dos meus próprios ouvidos
NINGUÉM
PODE ACREDITAR
EM VOCÊ SE VOCÊ
MESMO
UM GATO CAI DO TELHADO
UMA CASA DE SETENTA ANDARES
PARALISA O GATO AS QUATRO
PATAS NINGUÉM PODE
ACREDITAR
EM VOCÊ SE
VOCÊ MESMO
UM GATO
UMA CASA
NINGUÉM

mais um dia na vida do nosso herói

UMA ESPINHA NA VIRILHA O BANCO
APERTA AS CONTAS O MATE
LAVADO INCONTINÊNCIA URETRA
ANAL O CORPO AO
CONTRÁRIO PUNHETA PAREDES
SEM SENTIDO
UM DISCO
DOS SMITHS
ACHADO
NA ESQUINA
TRÊS CERVEJAS
MAIS UM DIA
NA VIDA
DO NOSSO
INIMIGO

terça-feira, 11 de março de 2014

você virou
o nome que assinava
repetido em prateleiras
soletrado aos telefones
de livrarias subtítulo
de projetos de mestrado
rodapé nas planilhas
da editora credencial em
documentários malfeitos

segunda-feira, 10 de março de 2014

as últimas viagens
meu cachorro comeu
meus mapas molharam
num café na recoleta
enquanto a tv profetizava
um dilúvio logo à porta
a maior seca do século
em cidades opostas
os mesmos caminhos
diferentes só entre os pés
e a cabeça desde então
sonho só com isso
me espanta que tenha tanto
vento entre as montanhas e terra
em movimento e oceanos feitos
de superfície e profundeza
um monte de bichos dentro
as praias devolvendo
aos olhos água externa
salgada como a deles mesmos
nós sólidos até que a morte
mostre o solo sem movimento
oxigênio de outros vivos um ar
azul visto de fora no centro
um fogo desconhecido

nasce e soterra muita gente
lava laranja pedra noite fico
espantado com tanta coisa
que me parece tédio constante
grandiosos mesmos elementos
combinam-se e causam o que parece
cansaço acaso e um invisível
sopro feito de imperioso
inquieto fogo desconhecido
um sanduíche
de mortadela é o que se consegue
nos melhores dias de trabalho
não alimenta
como gostariam
os nutrólogos a minha mãe
um embutido
é o que me sinto
apertado no pão do trabalho
este que deus mandou fazer
com farinha enriquecida
com ferro
e ácido fólico e o diabo
deixou crescer
para que a gente
se amassasse
e se amasse
quando pudesse

sexta-feira, 7 de março de 2014

no hospital

se a cada edema
amputarem uma perna
o pinto ou quiserem
abrir a necrose do
pensamento
imagine
como estaríamos
amputadxs abertxs
desinchadxs mas
sem pernas
cada medo em um canto
do quarto
e saudáveis
as carniças
saudáveis

quarta-feira, 5 de março de 2014

não esqueça de
deixar na saída
a comida do cachorro
a roupa recolhida
as chaves no vaso
do véu de noiva
luz do corredor acesa
porta fechada pra rua
vazia
esquina esquecida
cidade passada
o trabalho cumprido
a caminho do nada
pessoas queridas
não esqueça de deixar
na saída

deus me livre

estive nos átrios
um desastre de automóveis
pôs-me à beira desta estrada
em que espero
uma carona
deus de braços
peludos de caminhoneiro
leva-me no rabo
de cometa
na boleia
de uma pedra
estrangeira incandescente
se desfaz no atrito
se entrar
na mucosa do planeta

deus
me livre de esperar
no acostamento do meu nome
essa carona que ainda não veio
assassinos de passagem
gentil homem que me leve
aonde não sei se
quero chegar

decomposto
quando o céu rejeite
meu corpo e chegue
à terra um punhado perdido
de moléculas que não
dirão
"a vida é movimento, e nada no movimento está ao abrigo do movimento"

(Bataille, O erotismo)

terça-feira, 4 de março de 2014

Desanimei do Apocalipse, os Quatro
Cavalheiros vieram em cortejo
beijar-me a mão levaram na garupa
eu em cada novo vestido
de cerimônia
de entrega
de um novo prazer para a Peste,
a Guerra, a Fome, a Morte

o primeiro foi meu pai
o segundo, meu irmão

Queridos eu sei
que vocês se esforçam pretendentes
mas lembrem-se vão
se os anéis ficam os dedos
comprei uma cama muito grande
com o meu próprio dinheiro
deito e quero
vocês e muitos mais
queridos cavalheiros
bichas lésbicas do apocalipse quero
vocês e muitos mais

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

a vontade masca a cara
e cospe
uma massa informe no lugar
cada pessoa tem um bolo
alimentar mal cheiroso
engruvinhado os garotos
perdidos atrás dos ex
rostos lambem
o que podem

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

a carapuça serviu
pra todo mundo
menos pra ti
saco
de supermercado na cabeça
suprimentos básicos
leite condensado
a carapuça é doce
mas não é biodegradável
não
a corrente a leva
no oceano pacífico
tem um continente

feito só de carapuças
de plástico
o fim
tá vivo
pula morde
encontra o começo
morto no asfalto
na tumba na foto
deixa saudades
da esposa e dos filhos
quebra
o esqueleto
nasce um monte de novo
começo que nem aquelas vespas
na lagarta
crescem comendo o
fim

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

taí
um dia
eu fiz tudo pra você

os poemas sobre ônibus
que nos levariam apertados
uma tarifa cara pra um lugar
da cidade em que não queríamos chegar
fazer o quê
eu fiz tudo
um rio intermitente represado
os peixes mortos na barragem
soltam aquele chorume nesse calor
fica ainda mais fedido
você tem

você tem
que me dar um rio um peixe
um ônibus novo que leve
pro coração de janeiro
uma cara
voltada pra fora
a outra no meio
do sucesso uma casa
no campo três orgasmos
na garagem um poema
pronto
pra outra

taí

sábado, 22 de fevereiro de 2014

não dá pra escrever
de bexiga cheia a barriga vazia
esperando a polícia com um prego
no pé as mãos amarradas cabeça também
pistola na nuca analfabetismo trauma no
crânio pavor do pior fica muito
difícil escrever desse jeito

já na cama num sábado
embaixo dum teto com água
no copo e o corpo perfeito sabendo
que amanhã
será domingo quantos versos
posso fazer e nem sei para que servem

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

do alto
da ovelha o monte
acolhe a
cruz que ergue
embaixo
da coroa os olhos
para o céu

dos ecos
daquelas palavras
gritadas se escuta
um sopro
secando os ouvidos da passagem
do pedido

nos
nossos braços
de repente se arrepia
dor e abandono
um dia sentidos
às costas o medo
de ouvi-lo e não ter feito
nada

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Salmo 5

Sôbalas
lágrimas
que risos alegrarão
a nova língua de Sião
enchentes dores de gripe
tumores mudança climática
amarrai a flauta no rabo
ó macacos
vossa hora corre e afoga

Salmo 4

Quem
verá o domingo
de trás
A expectativa do Senhor
é meu jugo
de naranja
Quem terá
a vitamina final?
O Senhor é meu vírus
meu gominho

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Salmo 3

Assim cantou Davi
com a boca seca do Tenofovir
ou do Efavirenz
Além das terras que o Senhor Teu Deus
Te Deum

Rimava Lamivudina
com Vagina ou Novalgina
Ai de vós fariseus
que da terra de São Paulo
tomastes o dinheiro
e o vírus dos portenhos
Ai de quem é vivo
teimoso e tem insônia
lhe darei uma boca
seca como o cu do camelo
estas foram as palavras
do Senhor Teu Deus
num dia ruim

Salmo 2

Lâmpada para os pés
de um milhão de bactérias
Ai de vós frieiras
pé de atleta é tua palavra

Debaixo da capa de gordura
músculos jamais fortalecidos
nas práticas do mundo

Autofelação
Tu e toda
a Descendência de Abraão

Salmo 1

Ó viestes
aí não veio

Fizestes de mim
travesseirinho do infazível
cheio de agulhas
e lembranças de menino

sangue
ejaculação
malditos sejam teus não filhos
e os não filhos dos teus não filhos

esta é a palavra
que o Senhor
Sim,
Senhor
era uma vez
eu era triste
mas aí uma noite
eu já não era
outra vez
eu era amém
numa vida
veio a outra
ia dizer "ficou
a mesma" mas
quem sabe
pode ser que era
outra mesmo
ouvia punk
escova os dentes
escolhe os crentes
viveram assim
pra sempre