terça-feira, 20 de agosto de 2019

laika
vira-lata
uivando no vácuo
dentro de uma cápsula que esquenta
a maior solidão
é não saber o que acontece
onde  aonde  por quê
cadáver em órbita
com os seus assassinos, não compartilho
nada além da raça
essa, você sabe
antecede e determina
quais os voos
qual a causa
o achaque

segunda-feira, 8 de julho de 2019

morar no mar
viver da areia e das algas que a onda dá
perder os filhos pras correntezas
sal nos olhos
o mesmo propósito de viver
dos peixes
é devagar e cauteloso o viver
e também acontece de enxurrada

as barragens foram feitas pra durar
o tempo exato de serem rentáveis
e estourar quando for melhor pro lucro

viver é a barragem ou estar no seu caminho
milhões de mortxs em minas gerais
milhões de dólares na bandeja

não sei
se eu sou dejeto que transborda
contenção sacana
ambos ou nenhum

tento ir devagar e com cautela
mas assusto

domingo, 7 de julho de 2019

oi
vazio de palavras
oi veículo anacrônico
hoje só falo por coisas animadas
não me matei

faz tanto frio e a vida se confirmou o que nunca mentiu que era
uma persistência
assombrada

do alto
desse tempo fosso
dessa fossa fácil
do futuro
físsil
um bicho muito obscuro vai
grunhir
uma evidência

quinta-feira, 28 de março de 2019

cortava uns nacos de pele do calo do pé e dava para as baratas comerem. assim cativou dezenas, e gerações. a pele sempre se repunha e as baratas não paravam de vir. uma vez em número suficiente, se deitou e deixou que elas roessem-lhe o corpo todo. essa história tem só dois fins possíveis. as baratas, tomadas por amor à mão que alimenta, se aninharam junto e também se deixaram morrer. ou então, bichos indomesticáveis, sugaram até os ossos e depois partiram em busca de outros restos.

terça-feira, 3 de julho de 2018

prematuro

Nasceu e pronto: tá preso. Nem médico nem maçarico conseguiram cortar o cordão umbilical. Ficou a tripa seca atada entre os meios, a mãe amaldiçoando eventualmente o momento da concepção e do parto, "ai se eu soubesse", mas não sabia e pensando bem, ou se proibindo de pensar, o amor materno é maior do que qualquer adversidade. Ele não.

Ele ia se enrolando nessa corda que não só não caía: aumentava. As pessoas ignoram como são abençoadas. Mesmo as gêmeas siamesas: pelo menos não têm a ilusão sempre frustrada: da independência. Individualidade, como você quiser chamar. E tropicava; num descuido a coisa vinha pro pescoço; podia tecer um suéter com aquela lã áspera de sangue coagulado; mas nada, nada adiantava.

Depois de recusarem muitos convites pra aparecer na televisão, e porque ela já estava velha e cansada e a vergonha dele só crescia, foram morar numa caverna. Imagine uma caverna no cerrado brasileiro. Com os calangos e as cobras comendo-se harmonicamente, em volta. Passaram anos.

A mãe morreu. Inchou, se decompôs, secou, e nem assim. As cidades não tão distantes contavam a lenda do ermitão preso a um esqueleto que vinha sequestrar as crianças malcriadas. Ele viveu trezentos anos. A mãe não era mais que um fêmur com alguns ossos indistintos em chocalho quando enfim o cabo de guerra acabou. Tuf, como se tivesse sido fácil, assim, desde o começo. O homem velho e barbudo olhou bocó a liberdade impossível, de repente entregue sem motivo. Ficou umas horas parado, sem saber pra onde ir. Então se agachou e recolheu os ossos. Se tivesse lágrimas, chorava. Se pudesse morrer, tombava ali mesmo, e seu futuro seria seco e desmembrado como a mãe. Qual era mesmo o nome dela? Tinha a lembrança vaga de umas bochechas gordas levantando-se em sorriso. E de um perfume estranho, fresco, parecido com lavanda.

segunda-feira, 2 de julho de 2018

façamos
um samba
da saúde
mental
faceira
ela faz
que vai
e não vai
a bunda
confusa
tremelica
com o lamento
e os pandeiros
chacoalham
desde os nossos
ancestrais