quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

você viesse
ano-novo
numa noite
de abril
entrando o outono
mal contornado
deste trópico
de capricórnio

ou estourasse
em outubro
com as plantas
eriçadas
em cores
e sexo
de abelhas

qualquer
que fosse
o dia
de chegada

- que chegue
ano-novo
anti-
calendário -

explode o ontem
em fogos de artifício espalha
a semente
do irremediavelmente

hoje

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

sonhei com meus dentes quebrados

pelo ranger noturno eles pareciam

flocos de neve ou móbiles de Calder

só que mais tristes amarelos e com cáries

acordo e passo a língua nesse duro

aparato de morder e ter medo o osso da boca

percebo-os inteiros lascados o de sempre

mastigo a mucosa da bochecha com alívio e decepção

domingo, 27 de dezembro de 2015

biografia do meu esôfago

A primeira vez que te vi foi na aula de ciências, riscado em giz na lousa, e nunca esqueci as primeiras palavras, movimentos peristálticos.

*

Por que as coisas não caem pela nossa boca quando viramos de ponta-cabeça? O túnel se desengolindo, tripas o cu caído precisamos chupá-lo de volta, obrigado, esôfago, por se dar ao trabalho.

*

Quando um homem te tocou e sentiu as feridas que você guarda, como não guardaria?, se você é paredes tubulares de uma carne finita, e um oco comprido na labuta de mover tudo, como o tempo, numa única direção.

*

À noite nos reviramos, dentro de mim você arde e me lembra: sou um corpo composto de ocultos / que ardem, no entanto / Os homens te descobrem a cada tanto pra te acalmar. E eu faço a pergunta inútil:

é no seu escuro que, um dia,
vou entrar?

os livros

É o pó do primeiro ao último. Quando você chega no último, precisa voltar tudo de novo. A bibliotecária pergunta se ele entendeu, ele diz que sim e ela se vai. Então começa: tira o livro da prateleira, passa a flanela na capa, na quarta capa, entre as dobras que ligam a capa às páginas moles do miolo, no entorno, e folheia rapidamente tudo, feito um voo, pra espantar o pó. Sente o nariz coçando embaixo da máscara. Tem vontade de enfiar o dedo na narina, pegar um pedaço de ranho e enfiar na boca. Mas luvas máscaras muito trabalho, muita sujeira. E pega o segundo.

A biblioteca tem infinitos livros. Todos eles escritos numa língua que você não sabe ler, que são todas. Você não sabe ler. Você nunca limpou uma biblioteca de infinitos livros. E, mesmo assim, todo dia está tirando pó, e todo dia está lendo as coisas de que tira o pó. É assim.

Agora faz uma pausa pro café. Este texto era pra ser um manual de instruções pra limpeza da biblioteca. Quando volta do café, com uns restos de bolacha úmida de saliva maçarocados no buraco do molar, você pega este texto e passa-lhe a flanela.

*

Ontem eu limpei todos os meus livros. Hoje, mudando uns de lugar, percebi de novo pó. Se eu não tivesse livros, o pó estaria nas coisas que eu tivesse. Se eu ficar bem quieto, fico empoeirado.

*

Eu morri, com esperanças de que nunca mais tivesse que lidar com o pó. Ai, que desengano. A alma é o pó que cai nas coisas.

*

Mas eu não tenho alma. Que sorte. Virei um vazio, um avesso, uma voltagem perdida dos fios. Virei um naco de matéria escura, onde o pó não se acumula.

*

Das prateleiras, os escritores mortos riem de mim ao rirem deles mesmos. Você tenta esculpir uma palavra. Você consegue e ela brilha. E depois a poeira a torna fosca, tosca, o desdém é um destino acidentado, porque logo vem o moço da flanela e uma brisa enche os pulmões das páginas amareladas, mas ninguém consegue insuflar fôlego simultaneamente em todos nós, escritores mortos, e quando morremos nós somos todos um só, todas e todos, conjugamos mofo e refrescância, somos casa do nada, do tudo e do pó.

*

Palavras,
poeira
organizada.

*

Palavras,
flanela
passageira.

*

O salário é uma safadeza pra esse tanto de trabalho. Olho a bibliotecária com raiva e disfarço quando ela pergunta: falta muito? Ah, falta, sim, senhora. Olhamos a extensão das estantes se perder na queda do horizonte. Ela suspira, tudo bem. E volta à mesa dela, onde cataloga cada um dos volumes infinitos. Eu volto pras estantes.

Alguns livros, eu pulo de propósito. Quando ninguém está por perto, bato uma punheta em algumas páginas, vão ficar grudadas com a minha porra escondida nas palavras. Ou então tiro a luva, tiro o ranho, mordo e guardo a gosma verde, espessa de pó, no buraco do dente, com o resto da bolacha.

As estantes não acabam.

Saboreio enquanto posso.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Sua mãe

Teve aquele dia em que você acordou e desceu as escadas, de repente a casa tinha escadas. Tinha uma casa e ela era cheia de escadas. E, como se não bastasse, quando chegou na mesa do café lá estava: a sua mãe, preparando o seu café. Ao lado dela, a sua mãe lia o jornal, enquanto, de costas pra todo mundo, a sua mãe molhava as plantas do batente da janela. Três vezes a sua mãe, bom dia. Você esfregou os olhos e continuou vendo a mesma coisa, então resolveu ir até o banheiro lavar o rosto: subiu escadas, um número materno de degraus. E o espelho do banheiro é só sinceridade: lá estava, te olhando com espanto mal disfarçado numa máscara de amor, o rosto da sua mãe.

Correndo pela ruas, caindo e subindo de volta na bicicleta, a sua mãe dirigia ônibus, pedia esmolas, andava altiva e distraída com um cassetete na cintura. E servia mesas nos restaurantes, andava de mãos dadas com a sua mãe em uniforme de escola. Você pedala, o mais rápido que pode, entre as buzinas e de olhos fechados, e consegue o corpo exausto, sedento, faminto, chegar a um resto de floresta, está mais pra mato, depois do fim da cidade e da periferia dela. Você sentiu o chão se arremessando sem piedade contra o seu corpo assim que as pernas amoleceram e a bicicleta perdeu o fôlego. Tremendo de frio, de medo, de cansaço?, você viu a luz do Sol piscar entre as folhas que o vento brincava. Uma brisa fresca e um planeta seguro. Você suspira, leva a mão à barriga e mastiga um grito. Lá dentro, no escuro e sem rosto, alguma coisa mexe.

sábado, 19 de dezembro de 2015

os diários me deram umas amigas

e uns meninos que eu lambi com gosto

enquanto busquei novidades nos meninos

hoje sem querer é que as encontro

depois de perder duas dúzias de namorados

e de passar voo rasante as doze casas do zodíaco

salvei a princesa que era eu

trancafiada na última torre do castelo

e joguei ela no precipício

vi a princesa caindo inconformada

mas caindo a gravidade não precisa de confirmação

e comecei de novo a subir

as doze novas torres que se abriram

agora sei que lá embaixo tem um

trezentos

dragões


segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

notícia da reintegração de posse

Sentados em volta da mesa
aos gritos escutando a advogada
que diz dos riscos de policiais
armados disfarçados de civis
mesmo os civis são perigosos
vivem nos covis do medo

Meninas, meninos e meninas
decidem como irão receber
os jornais e os exércitos que
dirão "Vocês não podem mais fazer
a vida como a querem ter"

E escolhem entre correntes e cadeados
amarrados nos seus corpos pequenos
e nas pilastras da escola ocupada faz um mês

E uma saída na surdina de madrugada
com pais de testemunha e portões abertos
à retomada da ocupação assim que os juízes e o exército
se esquecerem deles


domingo, 13 de dezembro de 2015

gorda
nas coberturas
e de vida tão dura
é uma contradição em termos
de terno
suado
nos trópicos quem diz
que se pode compreender
o corpo
um
aprendiz de tantas contradições
se gastando até perder
o que a gente é e aumentar
de importância nos olhos
de quem quer
continuar

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Pescoço, pé, como era mesmo a ordem do corpo

Olha e recomeça: pescoço, peito, perna, pé

O que vem antes, o que vem depois, e o que vem no meio

Um roliço contundente, decidido, vem no meio. O cu se contrai e se dilata contra a vontade. Poucas dores (locutora do documentário pra televisão) poucas dores se assemelham a essa, segundo os médicos, que provaram todos do roliço impaciente, você diz

Para, para...

E ele se retrai meio confuso. O sorriso em cima de tudo diz "calma, respira", porque não é no dele.

A sua mãe fala:

É sempre mais fácil quando não é com a gente.

Ela deve saber. Pois foi a sua mãe que com o rolocompressor esmagou Gothan City.

Esta é a história da sua mãe:

É uma noite fria entre os lençóis do Homem-Morcego, já acostumado à solidão ele nem nota, e até prefere. O treinamento dos heróis requer muitas noites ao relento, e com conforto ninguém luta. Bruce Wayne treme mas se mantém firme no propósito: de dormir até que seu corpo e sua mente se reencontrem e ela possa sair pela cidade, sedento, caçando criminosos.

Esta noite, no entanto, algo o interrompe: a mansão Wayne no meio de um terremoto, quantos ataques terroristas, pesadelos, a guarda baixa do Homem-Morcego são necessários pra fazer tremer o chão e as paredes, pra que o mordomo fique preso entre os escombros e suspire aos ouvidos do amo as palavras finais: "Eu te amo".

Um arrepio diferente percorre o corpo rígido de Bruce Wayne. Seus olhos adquirem a consistência de vidro fino numa tempestade, o vento uivando em seus ouvidos, Bruce Wayne sente uma lágrima que ferve ao descer por suas bochechas. Em instantes, o Batman aparece de capa e cinto e cueca aparecendo, uma armadura o Cavaleiro das Trevas escala os ares à procura do motivo do estrago.

Sempre.

Tem.

Um motivo.

Pro estrago?

No intervalo comercial, infinitos sorrisos assombram a sua tristeza. Dentes brancos, livres de cáries, ameaçam te morder.

As trevas ressurgem quando você quase já não resistia. E a sua mãe triunfante reivindica o fim de Gothan City, é ela, vê?, de avental sobre o rolocompressor.

Que esmagou os crânios das criancinhas, do comissário Gordon, de todos os supervilões que escondidos não puderam se proteger, A sua mãe não aceita alianças. A sua mãe não tem piedade.

Através da tela, ela olha diretamente pra você. Cuidado. O amor que ela sente não tem fim.

Quem poderá acabar com esse terrível amor incondicional?

Eis que da noite se forma um homem escuro, imenso, com sede de vingança. Suas botas de ferro no peito da mãe arremessam pra longe aquele corpo que não fosse ser mãe seria

Como.

Qualquer.

Outro.

Com um tiro um estilingue um bumerangue em forma de morcego, o Cavaleiro das Trevas desliga o motor do monstro e salva a Gothan City uma vez mais.

Com a Bat-Corda amarrada no quadril, o Batman chega ao chão e trava o maxilar: em volta, prédios e asfaltos tingindo do sangue negro da noite de Gothan.

E.

Entre ferros retorcidos e carros revirados.

Está.

A sua mãe.

O Cavaleiro das Trevas avança com ódio em direção a ela. Você matou os meus amigos, os meus inimigos, a minha cidade!

Enquanto ele percorre com os dedos os compartimentos de seu cinto, a mulher recobra a consciência após a queda e, percebendo sua derrota, chora.

Na lágrima que agora escorre no rosto da sua mãe, prestes a ser executada, o Homem-Morcego vê sua vida: a infância breve com os pais assassinados, um mordomo de mãos firmes no seu ombro adolescente, a vida ociosa e sem descanso de um bilionário vingativo.

Por trás da máscara de tecido sintético que deveria imitar um morcego, Bruce Wayne sente uma onda de calor envolver seu corpo. E diz a palavra que, desde menino, nenhuma mulher jamais lhe respondeu:

"Mãe"

A câmera se afasta dos dois corpos prostrados no chão derrotado, e sobe mostrando a destruição sem fim que se tornou Gothan City, e os Estados Unidos, e a América, e o planeta Terra. Mergulhada agora na densidade escura do espaço, a câmera descobre que o universo não tem dias e não tem noites.

Também não tem heróis nem mansões.

Mas.

Mais importante que tudo.

O universo.

Não tem mãe.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

As palavras têm uma densidade difícil de esvaziar

Mas cada sílaba dita ou escrita é um buraco de minhoca

Por onde a densidade escapa e reaparece ligeiramente modificada

Até que ninguém entenda mais o húmus

Que ainda assim fermenta o nascimento

Do sentido.

Dos incontáveis

Barulhos soltos desde que o mundo

Concentrado em torno de si mesmo deu início

À transmissão aérea do ruído

Sobram tão poucos, poucas páginas, tudo é resquício

E borbulhas instantâneas desde as crateras do presente

Se esfriam em contato com o ar, se tornam pedra

Pra logo vir o vento e erodir esquecimento.

Mesmo assim

Sendo breves passageiros do tempo eterno

É nesses espirros e tropeços que a gente vive pra sempre

Falemos escrevamos erupções a todo o tempo

Estar vivo é (só) uma questão de movimento.

o último governador do planeta

O governador Geraldo Alckmin tem tido muitos pesadelos. Esta noite ele sonhou que o estado de São Paulo estava em chamas. Quando acordou, no lugar de lençóis de algodão egípcio um palácio o protegendo contra o tempo, um cheiro de fumaça em volta e dificilmente a gente sonha com cheiros, dor também não sonha, que nem essa micose ardida de repente entre dois dedos do pé direito de um homem que comanda exércitos, quem diria, os fungos não te obedecem.

E foi levantando devagar entre os escombros, sangue desconhecido em volta, onde estão os assessores, secretários, seguranças? Onde está o helicóptero, o estado de São Paulo, a cama, o governador Geraldo Alckmin tenta dormir de novo, às vezes quando você dorme acorda dorme tudo volta a ser o que era, um homem negro e uniformizado traz uma bandeja de prata com a cabeça dos inimigos, no pijama listrado o governador quer mover as mãos feito maestro de orquestra a bandeja é maior do que a região de Pindamonhangaba, e as cabeças dos inimigos sobem aos céus um edifício de vitória.

Mas não esta manhã, Geraldo Alckmin descalço com micose andando em brasas, até onde o olho alcança, tudo é o seu reinado, e é um horizonte sujo terraplanado, onde está a grandeza do estado de São Paulo, a tropa de choque atacando a cheia do Tietê, onde estão as águas, os amigos felizes, os obedientes, os pés tropeçam em ferros retorcidos no que antes era um asfalto liso e lindo, cinza como os seus mais belos sonhos.

Andando horas em busca de comida, de uma garrafa de água mineral, de alguém que diga "sim, senhor", "sim, senhor governador", o governador Geraldo Alckmin enfim encontra uma protuberância no seu medo, e se aproxima: numa cova cavada fundo, 14 milhões de cabeças sem corpo, e é só olhar de perto: cada uma é a cabeça do governador Geraldo Alckmin. Aturdido, inconformado, ele se deita e está cansado, e enfim dorme, e tem um sonho:

A salvo novamente no palácio, todos o olham de novo prontos, satisfeitos. Um homem negro uniformizado entra. E uma brisa fria faz cócegas no seu pescoço.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

crime e castigo

A capa mostrava uma silhueta

O busto escuro de um homem em que dentro
reproduziam-se abismos do mesmo busto
em cores infinitas até que acabassem
no limite da tinta e do olho

Eu tinha treze anos e poucos amigos
aquele livro era um escudo nos intervalos
contra os meninos que cresciam no meu peito

Aos poucos fui ganhando outros contornos
e vários meses depois de ter começado
fechei o livro sem ter entendido
muito da história

Mas nunca mais me despedi
da São Petersburgo escura e molhada
com febre, perdido na escola, os meus treze anos

sábado, 28 de novembro de 2015

Roberto Piva

Leão

Devorador de garotos

Jaguar dos edifícios da morte

Desces e cavas com as garras

Tantos mais círculos do Inferno

Quanto dias tuas palavras morderão

O futuro da metrópole perdida

Grandes predadores extintos

E vindouros

Te saúdam

Leão

Devorador de garotos

Jaguar dos edifícios da morte
Meus cachorros me ensinam todo dia

Que a vida pode não ter sentido

Além de deitar comer dormir olhar para o humano em frente

Que pensa "Pra você,

Cachorro,

A vida não tem sentido", todo dia

Eles me ensinam que a vida

Tendo ou não sentido

Ei-la

sábado, 14 de novembro de 2015

Nunca estive em Paris
nem em Madagascar
não sei onde é Parintins
só sei o nome de lá

nunca andei pela margem
do finado rio Doce
desconheço seus peixes
quaisquer que eles fossem

e no entanto só penso em lá
e cá sinto um peso no peito
e já vou arrumar um outro jeito
de ficar sem poder escapar

desse mundo maluco por um fio
amarrado na ponta de um fuzil
a outra ponta acesa num pavio
curto e dentro de um céu azul anil

que fica em cima de mim
e do povo de lá
do confim dos confins
que são os mesmos de cá

cheios de outros mins
indo pro mesmo mar
aberto e fundo sem fim
sem poder se mudar

pra um planeta que fosse igual a este
num universo bem diferente deste
onde não precisasse nem pudesse
escolher entre a gente e os peixes

ia ser muito lindo, isso eu sei
viver, só viver, e viver bem
mas enquanto não chega, se é que vem
o futuro é o presente que se tem

em São Paulo e Paris
e em Belém do Pará
e até mesmo onde
ninguém foi nomear

então ficamos aqui
aqui e em todo lugar
o nosso tempo é aqui
a nossa casa é já

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Argiloso

O quarto dono da empresa entra na suíte subterrânea e senta na poltrona de couro. "Continuamos esperando?" Cuspe na gravata pra limpar a mancha de geleia. Um complexo sistema de ventilação atravessa o centro do planeta e liga as antecâmaras da desgraça espalhadas por aí: filtro de ar, salão de jogos pras crianças, uma corrente no pescoço de cada faxineira. Quilômetros acima, seguindo por uma claraboia de chumbo e recolhimento, um gêiser de gás carbônico libera na lama os detritos aéreos dos donos da empresa.

*

Tinha tudo quanto é peixe no planeta. Hoje não tem mais. A presidenta Dilma está afogada em argila no centro do Palácio do Planalto. Os tecidos dos seres antes vivos começam a petrificar e depois eles fermentam e formam um combustível que daqui a milhões de anos uma raça de outro mundo vai descobrir e dizer: isso não nos serve. Nesse dia, os filhos dos filhos dos filhos etc. dos executivos vão se arrastar até a superfície, de pele evoluída, mucosa fina depois de tanto tempo no escuro. Os alienígenas vão olhar pra eles e sair de mansinho. Um vai dizer pro outro: eu, hein.

*

Cada culpado tem certidão de nascimento, nome e sobrenome, e cara de pau. Ninguém vê nada disso. Os peixes, por outro lado, não têm nada. Nem as casas, os cavalos, os caipiras mortos. O quarto dono da empresa descansa a cabeça no travesseiro de plumas e inspira o ar puro do bunker. Não tem abalo sísmico, justiça divina, revolta que o alcance. Vista do espaço, a Terra é um ponto marrom e monótono.

*

"Continuamos esperando?"

Os donos da empresa se olham entre si, depois voltam a olhar a tela. Fotos de satélite atualizadas por minuto mostram que é, pois é, não tem mais jeito. Um ponto verde, no entanto, se mantém no mar de lama, porque o relevo e os ventos e o acaso fazem dessas coisas. Eles se olham salivando. Um puxa o cordão que traz a cozinheira e nas mãos dela uma bandeja com iscas de peixe, dedos de meninos, mulheres vivas. O que os executivos comem? Onde vivem? Como se reproduzem? Como pode? Com a cabeça erguida, eles se olham e se desejam, polidamente:

Bom apetite.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

O amor e eu

o amor entra numa fria. Estávamos nós dois, eu e o amor, na porta da geladeira, a gente estava. Olhando pra dentro como quem vê a si mesmo. E sem se enxergar. Então um litro de leite agarrado em caixinha na mão, camadas de papel e cola e alumínio, um copo vazio em cima da pia. Depois o líquido branco, insuspeito, passado na água sanitária. O amor toma o primeiro gole, tem um troço e morre.

*

O velório do amor foi o mais triste que você já viu. Deitado em caixão fechado, sem enfeites de flores, sem a roupa escolhida pela família. Eu morri e minha mãe comprou um terno e eu queria ser enterrado com a camiseta dos Ramones, mas não protestei. Eu e o amor em cemitérios diferentes, porque as nossas famílias não querem dar pinta. A camiseta dos Ramones empesteou o armário e a casa e a lembrança que minha mãe teve de mim. Secou à sombra, o instinto materno: tudo que ela queria era um filho no sol, limpo e insuspeito. Mas eu bebi a água sanitária. Fui enterrado fora da cidade.

*

Jesus me recebe de braços abertos, nas mãos as feridas purulentas que ele limpa no meu terno. A gente se abraça e eu enfio o nariz no peito magro do Cristo / sinto um cheiro de guardado, coitadinho. O amor, ele me informa, foi destroçado nos trinta círculos do Inferno. Trinta e um, agora. Eles aumentam. Jesus põe o braço ossudo sobre o meu ombro gordo e me mostra esse novo lar: o Paraíso. Simulacro de coisas do mundo, mas envolvidas numa luz clara, terrível. Enfim ele me deixa debaixo de uma figueira e eu adormeço. No meu sonho de espírito sem corpo, encontro outra vez o amor. Sinto o toque morno dele no meu rosto. Estamos num quarto escuro e alegre, longe de todas as coisas. Aqui tem um cheiro podre, de coisas apodrecendo. Eu e ele apodrecemos. Nunca fomos tão felizes.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

indícios

Em cidade estranha
no ônibus, eu atravesso
em olhos a janela em busca
de olhos alheios que me digam
você está aqui
estrangeiro

E agora, nesta cidade repetida
todo dia em sonhos de fuga
e apocalipse, que
olhos eu vejo me vendo, dizendo
você também
é estranho
e é o mesmo

Viajamos por dentro
dos glóbulos das ruas do mundo
e nem sempre
nós vemos
os indícios
da viagem

Caras flutuando sobre roupas,
anúncios de juros e de jóias,
pessoas que poderiam
mas nunca estarão
nas nossas bocas

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

animais

Um mosquito
incômodo
porque existe.

Assassino
porque posso.

*

Esta rua fica cheia
de dentes de cachorros
quando passo com cachorros
na coleira. Eles rosnam
atracam-se nas grades

por milênios os cachorros
evoluindo se tornaram barulhentos
foram presos nos portões.

Quando passo
cem fileiras de dentes
à mostra.

*

Esses dentes
molhados
milênios
em busca
do pescoço:

ficam gastos
se não mordem
se só mordem
a si mesmos

e os cachorros
vivem menos
anos que os humanos.

*

Jamais
Jaguar

*


domingo, 25 de outubro de 2015

voltei para o Facebook e que importância isso tem nos rumos da espécie e da minha vida

Um homem sozinho plantou mil árvores numa rua de São Paulo
e a prefeitura depois de um tempo instituiu ali o primeiro parque linear da cidade

Uma jogadora de futebol deu uma pirueta maravilhosa
na cobrança de escanteio

O aborto em casos de estupro está sendo proibido no Brasil e mães solteiras
não serão consideradas pelo Estado como unidade familiar

Todo mundo está rindo de quem chegou atrasado
para fazer a prova do Exame Nacional de Ensino Médio

Hoje é o dia
da democracia

E a Organização das Nações Unidas completas setenta anos
este ano

Eu tenho 700 amigos e amigas
e 932 fotos visíveis pra elas e pra eles

"A gente fica mordido, não fica?"

(curte
compartilha)

terça-feira, 20 de outubro de 2015

um fio duplo
ou nenhum fio

a máquina no ar
ou na mão

sua voz baixa
ou apertada

entre as cordas
e a corda

*

a hora da mulher
de desligar a própria vida
passa pelo pescoço
e a maçaneta da porta
dá voltas na base do fone de ouvido
entre os gritos dos filhos

alcança a extensão
da rede de telefonia de uma cidade
com meio milhão de habitantes
um mundo com número indefinido de gente
quantas pessoas neste momento também
estão se matando

discagem pra um número conhecido
eu sou o filho da amiga
que não pode atender
porque está ocupada com outras amigas
e você não quis deixar
um recado

*

o tempo todo estamos deixando recados
quando desligamos sem dizer quem somos
ou nos matamos num quarto fechado
quando trazemos a irmã de São Paulo
pra um churrasco

quando a dívida acumulada faz perder
a casa e a loja da família e abandonamos
o marido e os parentes na Coreia
com três crianças pequenas nos instalamos no interior do estado
sem saber que dali a quinze anos
tudo isso vai ter fim

e as pessoas vão dizer
que não era necessário
mas que o jeito dos orientais de lidar com o desespero
é mesmo drástico
e que Deus, entre os pecados, tem tudo
planejado

*

os olhos e as mãos sobre cadáveres e moribundos
nunca me apresentaram a morte com a mesma presença
que a voz trêmula ainda viva me alcançando acaso no telefone
e eu não sabia

domingo, 18 de outubro de 2015

el rancor

Uma zebra atravessa a savana
do Atlântico Sul escapando da manada de búfalos
fantasmas rinocerontes do instinto

e não há predadores o planeta
cheio de herbívoros que descobrem
comer os colegas
é bom

com Deus os leões
e os tigres
e o tiranossauro
rex

criam humanos
nas grandes paragens do Paraíso, a chuva
de sangue cobre os montes do Himalaia submersos
gargantas de gente rasgadas no projeto de alimentar
a vida eterna povoada de carnívoros

as trombetas dos anjos do Senhor anunciam
ecoadas nas tumbas dos oceanos
toda hora
é hora
almoço

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

meus cachorros no Instagram

A fama percorre
os pelos marronzinhos do meu cachorro
em forma de pulgas invisíveis
para estas unhas que protegem
mal e mal
os dedos um deles inflamado
em contato constante com as teclas

e coça, coça, coça

*

meu cachorrinho
são dois
nenhum deles participa
do Zeitgeist que alguns dizem narcisista
curtindo a própria vista transformada em pixels
numa internet mal e mal
paga com a grana que o governo
me dá pra que eu mantenha a luta de classes
equilibrada como está

*

meus cachorrinhos
são muito conhecidos mesmo
pela meia dúzia de amigos que nunca veio
aqui em casa

pra ter a honra de serem mordidos
pelos dentes que se atrevem
a dar de ombros pra que as pessoas
gostem deles

*

fui de férias pra uma praia inóspita
mas cheia de cachorros que não eram meus
e fiz muitas amizades

um avulso entrou debaixo da minha mesa
e latia para o louco chato
que vinha cuspir nas minhas batatas

outro, grande e preto,
como a depressão segundo a OMS
se deitou do meu lado e se escorou

na minha anca chamuscada pelo Sol
e se coçava, eu pensando
deus queira que não seja sarna

mas como eu próprio tenho sarna,
pensei, se pegar a dele também,
passo pomada

*

são centenas de milhares de anos
é o que dizem

cachorros e humanos evoluindo
uns ao lado dos outros

por isso o olhar molhado dos caninos
provoca em nós um aumento da taxa de oxitocina

a mesma substância que as mães recentes têm no corpo
pra que não assassinem seus bebês

um bem-estar em relação ao outro
regulado por funções químicas

acho que por isso, no Instagram, meus cachorrinhos
recebem tantas curtidas

domingo, 11 de outubro de 2015

um grande acontecimento

vontade
de começar um novo blog
do mesmo jeito que escrever "vontade"
numa linha separada
leva a linhas nunca antes
navegadas, do mesmo jeito que fazer
uma rima
manjada
cria ecos dentro dos ouvidos
acostumados à dissonância
dos sentidos

*

saudade
do tempo em que eu pensava
"vontade"
e uma revoada de aves se mostrava
ao alcance do estilingue
hoje eu não mato aves
e tenho dúzias de estilingues
compro o frango resfriado com hormônios
na bandejinha de isopor do mercado
depenaram a morte pra mim
e quando como tenho azia
o meu corpo já não se faz mais
como antes se fazia

*

na casa de rejuntes e azulejos
ouço as vizinhas comentarem
os copos quebrados feito
um grande acontecimento

deus do céu que abandonaste
estas paragens da galáxia há tempos
e fazia de mim um vaso novo
hoje me dá copo quebrado ao lixeiro

tenho trinta e um anos neste corpo
estilhaçado em cansaços e desejos

nenhum deles agora igualado
ao interesse por esse copo quebrado

*

ano que vem já começou
me fotografa quase no meio
do caminho desta vida

a segunda metade vai ser
ainda mais demorada
que esta

se o paradoxo de zenão
estiver enfim
correto

(deus
queira
não)

domingo, 12 de julho de 2015

alcanço a cada ato um pouco mais de significado
mas quando o tenho, entre os dedos um objeto alado,
ele se esfarela e tenho que voltar de novo ao começo

como ninguém nunca volta ao começo, momento
quando as células se juntam e fervilham e separam
alcançando a cada parto este agora esfarelado,

me vejo seco numa ilha depois de ter nadado meio oceano
fugindo de outra ilha alcançada após nadado meio oceano
precisando buscar outra ilha nadando talvez mais meio oceano

nunca sabendo se essas ilhas e os objetos alados e os oceanos
terão futuro ou chegada ou mais uma metade
para mim

enquanto tiro a areia da sunga e escolho entre os cocos
um redondo de pedra cheio de líquido e alimento
peço às pernas que descansem e aguentem

e ao próximo ato de significado que não abra
as asas antes que conheça os meus dedos
e que aguarde paciente mesmo que não chegue
o meu momento

segunda-feira, 22 de junho de 2015

difícil e cheia de sucessos

Você
tava esperando um corte no filme
que te levasse sem corpo pra 2025 quando
uma crise de meia-idade colocaria em xeque
tudo o que você conquistou até aquele dia

e era tanta coisa
que ninguém nem poderia listar, a casa e os filhos
e a forma invejável por quem nasceu 15 anos depois
de você, mas agora
a existência parece supérflua, um rearranjo rápido
pode botar tudo no lugar certo e aí corta

pra 2035, 45, morre alguém
muito importante e de novo
a vida é lidar com perdas
apesar de tudo o que você ganha

prêmios internacionais de melhor caráter do planeta
reconhecimentos que sua mãe nunca pôde dar em vida
corta pra 2055
65
75

200 anos depois com sorte
muitos dirão mas que vida
difícil e cheia de sucessos
você teve
e que morte tão bonita, agora corta
pra 2005 flashback
antes de tudo já se preocupando

tanto tempo, e morrer

tanto

sexta-feira, 19 de junho de 2015

os dedos e as pontas deles me dizem que não tem
nada mais escuro que aquela parte do corpo em que o osso
desliza úmido entre os músculos se está preso
ou algo solto não importa é muito
muito de qualquer forma

escuro, nesse sentido o seu corpo é como
se estivesse submerso em bilhões de toneladas de água salgada
atmosfera peixes abismos os espíritos
passeando sozinhos eles estão
à espera de reencarnarem para de novo ter esse incognoscível
fronteira de duro e queda a estrutura
que nos mantém em pé

venham futuros
países
de medo, venham
vontades e mortes e sonhos
com pessoas queridas que se foram e festas
e torpedos, se um invento
fatal de cientistas e deuses atravessar com luz
o de mim
impossível insondável irreconhecível igual a todos
tecido escuro

pelo menos um alívio vai sussurrar nos ouvidos
uma vida em fuga pobre desta vez eu prometo
desaparecer porque nada mais será em mim mesmo
o mistério que deixa a gente
atentos

domingo, 3 de maio de 2015

A sinceridade escorrega
A profissão é um sabão
Depois que o futuro chegou
E não trouxe o futuro com ele
Vivo aqui neste passado
Esqueci de encontrar o presente

Que os erros aconteçam
Como aquela sujeira de unha do pé
Que por mais que você corte nega esfrega
O ponto preto continua no pé

domingo, 29 de março de 2015

Tenho especial interesse por aviões
que caem e um carinho
por aqueles que os derrubam
desde que não sejam
em terra os senhores
da guerra
mas por exemplo pilotos
ou copilotos
que se trancam nas cabines
e decidem que a queda
já vinha
acontecendo
o que faremos
é ir
de encontro a ela.

sexta-feira, 20 de março de 2015

na
Argentina
eu sentia muita falta
de comer
coxinhas
acarajés e pastéis
de Belém

eu sentia
muita falta
de comer mamão papaia
mas me contentava
milanesa com batatas
a parrilla
era como
o churrasco

os escravos africanos sequestrados no Brasil
comiam terra pra matar-se e saciar a saudade
ensinada nos livros de História como banzo

desde que o primeiro hominídeo olhou pra frente
na África e viu que seria gigante o seu horizonte
sentiu na boca o gosto ardente de refluxo do futuro

por isso
há milhões de anos
temos papilas que se tocam
apenas por períodos curtos

na maior parte do tempo
só temos a nossa própria
saliva

quinta-feira, 19 de março de 2015

A bondade raspou os joelhos na calçada. Um time de futebol chutou e a bondade entrou redonda entre as traves, com gritos de gol, a bondade foi pega e cortada e destrinchada e exposta vendida em ganchos bandejas o sangue acumulado insistia em não coagular mesmo entrando nos buracos da gengiva expelido do mamilo mordido um vírus camuflado a bondade era muito querida. Ao levantar de manhã todos os dias, ao se deitar à noite todas as noites, nesse luxo que é ter uma cama e pernas grandes a bondade olha longe, sem inveja, segue contente porque todo mundo está contente. Ela é um satélite que rastreia a gente. Ela é o que insiste em não aniquilar, e guarda o sol na geometria, e guarda a arma na bainha, e resiste e enfim esgarça. Então gargantas roxas, rios de angústia, alegria transborda.
deve ser bom
ter um bicho grande
entre as pernas
você se move
com seu osso
na boca
e lhe lambe
entre os dedos
dos pés, ele dá
água e comida
e bronca e carinho
e você
late chamando-o
ou como
se ele
não
existisse

sexta-feira, 13 de março de 2015

A noite se repete
ainda não se dissipou
e já é de novo noite

meu cachorro
põe a cara na janela e assobia
uma carência que eu não posso resolver

muito menos enquanto como uma banana
porque acordo com um buraco dentro
na altura do estômago

Cachorro, banana, estômago
e estava tudo dormindo
agora há pouco, antes das janelas se abrirem

antes
das janelas se abrirem
tudo dormia comigo

e sonhava com viagens perdidas
ladrões, amigos,
assassínios que não aconteciam

Mas o dia lá fora tinha que entrar
atravessa as paredes e as mortes
estala entre os dentes da vontade

o dia insistente
já de novo ainda se repete
encontra a minha noite

um sol cobrindo a lua escura
aniquila todos nós
com luz

quinta-feira, 12 de março de 2015

O cachorro
avisa que existe
quando late

deixe que latam
os cachorros
que existam

que sejam
tão latidores
que latam tão alto

que todo
o universo
aumente

de volume
e o ouvido
do barulho

não ouça
mais o triste
uivo

sábado, 7 de março de 2015

oração

Era antes que eu tivesse
um crânio de cachorro
vivo fofo sobre
o meu pé e outro
deitado ali mais adiante
antes que eu dissesse
"meus cachorros"
e pudesse dizer de qualquer coisa
posterior a mim:
é minha

A vó arrancou do concreto do quintal
a planta crescia contra as crenças e chamava
comigo ninguém pode

era pecado tê-la
pois Deus tudo podia

Antes que eu tivesse um quintal
meu, alugado, e dois cachorros
meus, deles mesmos, e um concreto
quebrado

pela folhagem herege
cresce
décadas depois de morta
por minha vó, ela sim,
morta

pra sempre

Antes que eu tivesse visto
Deus
ser tédio e turbulência
arrancando
raízes sempre renovadas
e adubando de medo e dúvida
manhã e escuro consequentes

contra os quais

nada
pode

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Eu não conseguia viver com ninguém, então eu tive que me matar. A sobrevivência é nosso primeiro instinto, então eu tive que matar todo mundo. Lâminas, metralhadoras, os pais na mesa do almoço de domingo, o irmãozinho no berço, uma máquina assassina. Matei os vizinhos degolados, queimados, afogados, sem pressa e sem paciência, matei desconhecidos nas ruas. Delegacia de polícia. Usei gasolina, fósforo, sem imaginação, sem vontade de dar certo, sem preparo pro fracasso. Mas foi dando certo. Mas não teve fracasso. Dez, dez mil, dez milhões. Sete bilhões e meio de pessoas inocentes pisando esse chão, respirando esse ar. Não consigo viver com nenhuma delas.

Proliferação de animais carniceiros. Fim da emissão de gás carbônico, das usinas, fim da espera. Matei todas as pessoas do planeta. Sem arrependimento, sem desejo. Então os céus se abrem e Jesus Cristo desce em todo seu esplendor. Trombetas, arcanjos, prostitutas babilônias. Todos os alto-falantes do céu exaltam a sua glória. Ele é o caminho, a verdade, a vida. Só tem eu aqui, pra ver a sua segunda vinda. Meus pés se desprendem da força gravitacional. Passei a eternidade seguinte na presença de Deus. Deus, que é amor.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

crescendo
como as coisas
que não preveem
a própria morte

a árvore
se encheu
de galhos e folhas
e pequenos bagos verdes

e à força
dos ventos
e das chuvas e do centro
do planeta

ela pendia
ameaçando
desprender-se
do chão

o tronco dela
se tornou mais fino
as raízes
eu não sei

e com tesoura
e precisão
e com bondade
eu a cortei

os galhos novos
e pesados despencavam
entre os pulos
de alegria do cachorro

e a árvore
sem sinal
e mutilada
endireitando

quando enfim
pensei "salvei"
ela reta, em queda
para o alto

e o cachorro
focinhava as folhas
e os frutos verdes amontoados
sobre o chão

percebi
que a morte
da maior parte
da árvore

garantia
que o tronco e a raiz
continuem
crescendo

imprevisíveis
e se encham
logo
de novo

de um peso
insustentável
ameaça
a própria morte

então
tirei uma foto
do cachorro
que estava

entre os galhos
e as folhas e os bagos
muito
satisfeito

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

"O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar" Mateus, 24:35

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Desdobramentos da crise hídrica em São Paulo

Tivemos que aprender a lavar a calçada com cuspe. A tomar banho com cuspe. O corpo humano produz líquidos úteis. E não só ele. O sangue das pombas é muito útil. O número de pombas em São Paulo é algo impressionante. Coube muito bem às políticas públicas. A América do Sul é um jogo de dados. Nós vivemos o fim da era do acaso. No passado houve guerras causadas por disputas de águas, de batatas, de burcas. Especialistas afirmam que serão suspensas as atividades supérfluas. Há um aumento de atividades supérfluas. Ter mãe não importa. As igrejas enchem. As ruas enchem. Um exército de combate à seca. As ideias secam. Os ETs esperam. São Paulo em quinhentos anos uma colônia nova. O mundo é um deserto. Nós, um deserto. A Terra e seus sismógrafos. As extinções em massa são cíclicas. Os animais mais populosos do planeta. Do cemitério os dinossauros se desenterram e tomam o que era deles. A era do aguaceiro. Pedrinho aprendeu a não gritar "apocalipse".

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O último governador do planeta



O governador Geraldo Alckmin se viu sem roupas as mãos cobrindo as vergonhas na cara que ele não tinha e pensou o que estou fazendo aqui, era o último habitante da cidade de São Paulo, que de resto estava como sempre esteve, só que nada funcionava. As capivaras olhavam o governador tropeçar margem acima do Tietê alcançar a ciclovia vermelha e os pés pelados no asfalto e as capivaras voltaram a olhar o horizonte lixo. Geraldo Alckmin estava sozinho, sem helicópteros que o salvassem, sem seguranças sem shoppings fardados, é triste ser o último homem de São Paulo, mais triste ainda ser Geraldo Alckmin.

Com trinta e nove graus nas solas dos pés ele cruzou as avenidas a ardência na careca os testículos escondidos entre os dedos a educação católica não deixava ele sentir as coisas boas, o mormaço materno à rara sombra, o silêncio de milhares de quilômetros sem carros e sem pássaros nem crianças nem serpentes, pense senhor Geraldo Alckmin, se fosse o primeiro homem nesta terra há dois mil anos, quanto medo o senhor teria, quantas serpentes!

A vidraça foi quebrada com cocos no Bom Retiro e da loja popular ele pegou um short uma camisa e sandálias de borracha cuja procedência absolutamente nos escapa, tudo passa pela Amazônia, seringueiros, pau de arara? Multinacionais trabalho escravo análise de mercado? E elas seriam suficientes pra andar até o Palácio? E que teria acontecido com a cidade de São Paulo, catorze milhões de pessoas evaporadas e um governo desnudado inconsciente às margens do rio de pedra? O governador Geraldo Alckmin se perguntava muitas coisas, e de tanto murmurar ia ficando desidratado.

No Morumbi, já à noitinha, pulou portões caiu barranco e olhou espantado o céu escuro sem nuvens nem estrelas, o Palácio amarelado agora a seu alcance, mas que cansaço, o peito mais que ofegante, sua boca seca como a cabeça. Sabia que o cérebro flutua num líquido claro? O quente gostoso do piso do estacionamento amansava as suas costas. Ele quase adormecia quando três bombas de gás lacrimogêneo caíram ao seu lado.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Os planos
vão sempre
ser incompletos
Mil anos de vida
e a vida
acabaria antes
Do
dia
seguinte
De que serve
a morte
a noite
De que serve
o dia
seguinte

Ser branco e de classe média e, tendo recebido um diagnóstico de depressão, participar de um protesto de rua no Brasil em 2015

Morrer
poder morrer
a qualquer momento

É o motivo
de estar vivo
todo o tempo

Quando a polícia
te dá bom dia
sem armamento

Correr com medo
poder correr
eu recomendo

domingo, 4 de janeiro de 2015

Eu
que tenho um número
necessário de costelas

me levanto
da cadeira
e esquento a comida na panela

enquanto
vinte moscas voam em volta
do lixinho em cima da pia

que faz dias
que não tiro
e um cachorro

ofega deitado no pano
com a cabeça dentro de um cone
pra não lamber a ferida do rabo

e outro cachorro
olha melancólico
a rua vazia em frente à casa

alugada
alguns milênios depois de inventada
a propriedade

e mais de quinhentos anos
após a chegada
dos portugueses invasores à costa brasileira

alguns milênios depois de inventada
por uma tribo de nômades no deserto
a história do primeiro homem

criado pelo único deus
que sobreviveu
aos milênios e à infância

protestante
mas antes
era o primeiro homem

desobediente
mas antes
nomeou todas as coisas

em língua
que não alcançou
essas moscas e cachorros cujos nomes

eu invento

Ó deus ó animais
que sobrevivem ao desfile
de homens

rumo ao fim
de tudo e de si
ajudem

a encontrar
novos começos
e palavras

que revelem os nomes
dos homens, ou seja,
de mim mesmo

que tenho
um número mais que necessário
de costelas no meu peito

e esquento
a comida na panela
enquanto

tantas moscas
pousam no lixinho
que eu não limpo

e os cachorros deitam
no domingo
melancólicos

Retrato do Panguá

Você é uma força
da natureza
marrom e sem espelho
morde indiferente
as meninas quando te veem
não dizem que você tem quinze quilos
primitivos
só enxergam o cachorro
fofo
que você é
não veem

seu espírito

jacaré

sábado, 3 de janeiro de 2015

quem está só em meio às dez mil coisas?

as dez mil coisas
são todas
muito
chatas
e infinitas
não deixam
a gente deixar
de existir

se você morre
logo as dez mil coisas
expulsam o vazio
desejado na morte
se você sonha
logo as dez mil coisas
são o sono e a vigília
e atormentam o esquecido
feito fantasmas
no sonho que você lembra
as dez mil coisas
se apresentam se ocultando

elas são todas muito
chatas e insistentes

se você diz
fora dez mil coisas
elas não atendem
se você diz
venham dez mil coisas
elas não atendem

no ano
de dois mil e quinze
as dez mil coisas
já viveram
dez mil anos
se você quer
que acabem
os anos
e as coisas
azar

tudo
os anos
e as coisas
é muito
presente