sábado, 30 de dezembro de 2017

reveillon

nesses estalos
alguma coisa acorda

o céu se enche de barulho e luz
bobagens que assustam os cachorros
e deixam os adultos excitados

abraços e promessas
os cachorros
não comungam

assustados
aos latidos
brigam
com uma força
com a qual não podem competir

os adultos
se entregam
ao silêncio
e à ressaca

(o começo acaba
nele mesmo)

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

estamos todos bem

os filhotes de pomba são muito barulhentos e não param de piar no meu telhado. pensei em matar todos, mas a visão imaginada dos esqueletinhos sucumbidos ao veneno me deu um arrepio de compaixão e de tristeza. prefiro ficar irritado do que triste. acho.

quem também se irrita são os cachorros, que latem a cada piado. e me irritam mais ainda. não sei como a casa sobrevive. ela só fica de pé porque piados e latidos não são o bastante pra demolir prédios. se fossem, não sobrava pedra sobre pedra. eu já teria destruído toda a cidade de São Paulo. no latido.

então dou bronca nos cachorros e eles, contrariados, resmungam e param de latir. pelo menos por um tempo. ficamos assim: o pombinho piu, o cachorro au, eu chiu, um looping infernal.

o lado bom é que estamos todos vivos e bem. se irritar tem que ser um sinal de saúde, de bicho que está acordado e que se rebela. os pombinhos mesmo devem estar muito irritados com a fome ao relento. se eles pudessem, tenho certeza que comiam meus cachorros e bicavam a minha cabeça até comer os meus miolos. e no entanto estão lá, no telhado. pedindo proteção a algo que talvez eles chamem de: mãe.

sábado, 23 de dezembro de 2017

vivo num tempo sem relevos

olha
ali
uma duna

ela se move
com o vento

eu tenho os dias dessa viagem comprados
claro
como qualquer turista responsável
filtro solar, gps, caminhos previstos
a pousada é bem limpa e quase
não se veem baratas
antílopes domesticados
hora certa pra avistar golfinhos
soro antiofídico

é verão no hemisfério sul e logo
logo não vai ter diferença
entre um dia e outro dia

planeta de plástico
apocalipse sempre adiado
pro dia seguinte
pra hora
em que eu vou dizer eis
aqui
a minha casa

essa terra arrasada

chegado o momento
de ser duna, de ser vento
as bordas do tempo se fecharão

esperança
bandida
quer dançar
enquanto isso?

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

perspectiva

o furo
no muro

o muro
no furo
se queimarem
tudo
que fiz
não vão
apagar
esse gozo
de triunfo

se louvarem
igual
tudo
não vão
elevar
esse fosso
de fracasso

o buraco
é fundo
e lindo

já vou indo

resposta

nem te conto
o quanto
eu ando
me aprumando

eu deito
e sempre
me levanto

eu suo
e sempre
tomo banho

eu como
e cago
e ando

e faço
tudo
que posso

é pouco
mas também
é tanto

eu tento
e isso
é tanto

nem te conto
como
eu ando

eu posso
tudo
que faço

e faço
tudo
que consigo

eu sigo
sem rumo
mas ando
me aprumando

domingo, 17 de dezembro de 2017

mundo cão

quando olho o cachorro, sei que a vida tem uma substância própria e alheia a si mesma, uma inteligência sem palavras que adapta a matéria à insistência e à finitude. então o cachorro vem até mim e reconheço os critérios da comunicação, que a vida se interliga a outras coisas, inclusive outras vidas, de modo quase mineral.

ponho a mão no cachorro. ele me lambe ou passa o focinho gelado no meu braço. então perco todo o conhecimento prévio da vida. ela não é mais que afeto e lambidas. algo parecido acontece quando o cachorro late de madrugada e me acorda. então quero afogar ele na bacia, e a vida é só raiva incontida e despertares incômodos.

se não fosse o cachorro, eu teria que saber de mim e não conseguiria. não sei se suportaria a frustração. ou conseguiria. aí, se alguém me olhasse de longe, veria: um cachorro.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

the summer is tragic

vamos acordar
4 semanas
sem manhã
sem arrumar a cama

100 reais
pruma pizza
pruma noite
pruma vida

prega a promessa
desaparecida
o 13º
da geração passada

são paulo
o mundo inteiro
agora essa
tá com nada

frio na firma
de bermuda bege
segurando as fezes
the summer is tragic

legalizar o corpo
o coito morrer
de encosto
que acabe em barranco

são paulo
eterno
agosto
não fique

afoito
não fique
sem jeito
não fique

sem gosto
assim
não tem mais jeito
supere

engole seco
suado
no ar condicionado
intróito

e um próspero
enrosco
vem que vem
2018

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

você está aqui

no fio
do guizo
do gato

no fungo
da unha
do amor

no lago
do fundo
do oceano

no som
que não
se repete

*

no som
que se lembra
e se perde

no dado
jogado
por deus

no quarto
do fundo
do lago

no guizo
do gato
de alguém

domingo, 3 de dezembro de 2017

o que nasce
corta o tempo
entre os átomos

é molécula
junta
em pétala

célula de futuro
que se espalha
e cresce

conjuga
o podre
e o ápice

seca sólida
única
semente

que de novo
quebra
- nasce

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

eu fico assim
espalhado pra não ser
sempre eu mesmo
recolhido pra não ser
movimento
entropia sem querer
sem um centro

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

lamento

São muitos os caminhos
do inexato

tropeçam uns nos outros
passos largos

e buscam um momento
certo

de ter uns aos outros
perto.

Coitados de nós
tão delicados

os joelhos ralados
escorrendo

sem colo nem descanso
mas exaustos

tentando chegar
do outro lado

cilada

No inexato habitam
as cracas do espírito

que bom, corpo,
em nódoas e metástases

cálculos catarros e fezes endurecidas
você livre dessas porqueiras

depois de morto se dissolve
e Deus me manda para o Inferno

você não soube - ele diz - o tempo todo
nada se pode fazer

contra o Correto.

domingo, 26 de novembro de 2017

o sistema de recolhimento de esgoto
não interessa aos cachorros

os meus até comem aquilo
que sai de dentro do corpo

que gosto estranho gostar
de merda depositada no azulejo

como num prato perfeito
a matéria morna e presente

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Te digo, meu filho:
todos os bichos estão extintos
se você acha que o cachorro
latir é uma prova de vida
o rato e a barata
coxas de galinha
deixando pegadas de carbono
em cada rocha densa
eu me preparo
pra você
um dia findo
como eu
indo até o futuro
do buraco em que o planeta vai cair
você nem veio
e já te tenho
saudades


domingo, 12 de novembro de 2017

Se fica parado muito tempo
em volta do corpo surgem bichos
querendo fazer casa e alimento

Mova-se ou será comido
coma tudo que para
nada escapa do ciclo

É bom saber que sempre
alguém vai me querer
verme inseto ou gente

Bicho do asfalto, bicho do mato
planta minério ou vácuo
tempo concreto, tempo abstrato

sábado, 4 de novembro de 2017

laika

o rabo abanando
e a língua pra fora
da atmosfera
você foi embora

uivando no vácuo
na noite pra sempre
você morre
no espaço pra sempre

ninguém mais escuta
você latindo
na busca perdida
de um amigo

e eu vou sumir
antes que acabe
a sua viagem
de volta pra casa

terça-feira, 31 de outubro de 2017

avesso do parnaso

um dos maiores
é o que se diz
do poeta que tira ouro do nariz

e meia dúzia
louva o tal
pois lá no fundo todo mundo é bem igual

grande mesmo
é o vasto mundo
e tão pequeno que -- logo -- fica imundo

de minério
de catota
réguas vagas pensas guias -- tortas

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

um corpo que eu nunca toquei
com cheiros nunca sentidos
axilas amargas como outras quaisquer
questões de carne e de pelo

deviam ser úmidas as dúvidas
mas esta é seca
são todas

um bafo incrustado no ouvido
devorar os vapores da virilha
amor
e crises de acaso, corpo, caminho

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

nem lá
nem além
nem aqui

nenhum lugar pra ir

nem no meio
nem inteiro
a dividir

nenhum lugar pra ir

nem antes
nem durante
nem por vir

nenhum lugar pra ir

terça-feira, 3 de outubro de 2017

que vergonha ter um corpo bem-disposto
saído para o dia feito um cão policial
treinado pra encontrar
o nojo

terça-feira, 26 de setembro de 2017

every man must play a part and mine a sad one

é importante pagar os impostos
e morrer com as contas em dia

deixar boas memórias e um corpo
pra ser observado no velório

um nome também ajuda
a dar destino pra lápide

pros encontros dos colegas póstumos
e pra certidão de óbito

é importante viver plenamente
a morte agradece o seu esforço

e entre bocejos e aplausos
te arrasta pra fora do espetáculo

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

o cu largo da realidade

o cu largo da realidade
fistado dia a dia

ela é morna e frouxa
ela é suja e úmida

ela aperta
e abriga

e me suga


até
o cotovelo

domingo, 24 de setembro de 2017

faxina

tirei o limo do banheiro
não consigo esfregar o limo da alma
algo me diz que a alma não tem limo
e não tem alma

*

setembro nem me lembro
outubro ai que susto
novembro a rima é a mesma
dezembro e não termina o mundo

*

janeiro o ano inteiro
fevereiro, eiro, eiro
março sem abraço
abril o ano inteiro

*

passei cera no chão e vi um filme. mesmo assim, tudo segue pegajoso. amanhã é segunda-feira, mais cedo do que eu esperava. não tem rima nem remédio que salve. nem aliteração. renato russo no vídeo é mais jovem do que eu. tempo perdido.

*

"People always clap for the wrong things. If I were a piano player, I'd play it in the goddam closet."

(The Catcher in the Rye)

*

perseguir o texto errado. come chocolates pequena. fragmentos feios, didático do óbvio. e me esconder até sumir, sem medo. a próxima palavra é uma questão de espera. ela nunca nos pertence.

*

a palavra chega e limpa os pés no sofá. agora de novo a casa fica suja. a palavra peida durante o jantar. e tem um trabuco na cintura ninguém se atreva a bulir com ela. ela me mata um pouco a cada dia. eu sobrevivo porque tenho a saúde muito boa.

*

eu sou um desafio.

poema

guarda
a palavra
no escuro

ela quebra
e gera
estilhaços

que refletem
o que encontram
de luz mínima

e apagam
logo
que ela acaba

valeu
ter quebrado
a palavra

sábado, 23 de setembro de 2017

diário

a gente vive um tempo que não sabe. faz calor e o chão é uma ameaça. a qualquer momento tudo pode ruir ou se romper ou estourar. mas nada ocorre. aos poucos as pessoas vão ficando calmas. se olham e perguntam: então estamos vivos? e se matam. não todos, não ao mesmo tempo. a morte é um exercício. dois continentes de plástico se formam no oceano pacífico. as correntes marítimas são realidades tão distantes. um parente tem câncer, outro é atropelado, a vida: uma antessala. que vai dar em lugar nenhum, então aproveite. imenso e impiedoso agora. ricochete.

caverna

desconheço esses intestinos que trago dentro
são uma espera de correspondência
entre a minha mais tripa e os livros de anatomia

quem sabe tenho flores ou faíscas
no lugar de linguiça
quem sabe são serpentinas
minha fábrica de fezes

corpo pra que te quero
se não reconheço
agradeço
outro mistério

*

o escuro que trago dentro
pode ser luz
presa

o enjoo do pós-remédio
um barco
atlântico

a fome quando não como
um homem
incômodo

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

primavera

no asfalto mole as rolas flácidas
tolas ciscam o passado
e passam pelas moelas
as pedras duras do presente

que abandono de vigor nós vivemos
árvores, fuligem, azulejo
nascendo, nascendo, nascendo

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

compara

a vida dos gatos
é curta
e bastante

a vida das árvores
se mescla
à paisagem

a vida da gente
é que se
desequilibra

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

trajeto

sou grato ao acaso
um ônibus tem mais de quarenta lugares
não conheço nenhum de vocês
estatística e mistério são consortes
não sou grato a nada
num universo paralelo
bombas caem sobre a cidade
neste eu chego pro trabalho
vida é a espera da morte
pode ser que nem exista
o acaso
mas o ônibus segue
caminho traçado
eu desconheço

domingo, 17 de setembro de 2017

pega leve

sdds 2007
hoje escrever blogue é que nem máquina de escrever
ninguém consegue mais aquela urgência que a gente tinha
quando eu cheguei no google era tudo mato
nunca consegui sair da idade da internet discada
o download não completou
hoje temos muito em jogo
tecnologias de reconhecimento facial
e uma verruga de velha pendendo do nariz

ando gastando mais de mil reais por mês com saúde mental. white people problems. todas as coisas que possuo fui eu que comprei. em busca da vontade de viver. a literatura ficou pra trás. o futuro só deus sabe. em menos de um mês alcanço a idade de cristo. e isto é um registro pros arqueólogos vindouros. verão nossos pixels como nós a cerâmica dos antigos. nenhum nome resiste ao tempo. por isso o de deus não se diz.

mas é domingo como tantos que já passaram. deito com os meus livros e as roupas limpas que não vou guardar. sou tão anônimo quanto o meu vizinho, que também deve estar sofrendo, hoje ou qualquer dia. cada pessoa tem suas verrugas. em 2007 eu pesava uma pessoa a menos

sábado, 16 de setembro de 2017

o anti dia d

o mundo dá sinais de cansaço, bobagem
o mundo não dá sinais
nem ponteiros nem planetas deixam ver
o que está acontecendo
fósseis dormem tranquilos e nunca serão encontrados
tudo o que é vivo vai morrer
metralha verdades na parede do nada
quem sabe onde vamos chegar

e no entanto o corpo sua
com esse calor que se abate
dois mil e dezessete ano zero antropoceno
tufões nunca vistos pela espécie
nos põem pra suspirar

entre veias e artérias
circulam verbos que só se conjugam no infinitivo
no osso
sinto um poço
me afundando

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

nem morto nem tão vivo

naquele tempo eu não tinha medo de nada
nem me lamentava já tenho mais de trinta
e vivo num século sem força
fiz tudo antes do retorno de saturno
depois escrever virou um pêndulo
entediado sobre os abismos da morte

meu deus estamos presos no fracasso
a pessoa mais low profile que você vai conhecer
se esgueirando pelas saídas da História

abençoadas sejam as técnicas de sobrevivência
e o risco da morte que te atualiza
enquanto os impostos mastigam teu cadáver adiado
é festa a cada dia no incógnito do universo

não veremos nada disso valer a pena
meu pai morreu sem conhecer os netos
que, contudo, ainda não nasceram

venha, acaso, e me cubra
de progresso

quinta-feira, 11 de maio de 2017

olhando um policial

dê-lhe um cassetete e um capacete
desde sempre isso funciona
armas de longo alcance só aprimoram
esse jeito antigo de criar alguém melhor
tornando ele pior

as botas dão dureza aos pés
que, de resto, também doem
a farda é uma roupa como outra qualquer
vem em várias cores, formas e texturas
desde que venha sempre igual

você é igual só aos iguais
que parecem poucos, com todo esse aparato
mas você é qualquer um - e, pelado,
é diferente até dos teus
e igual a todo mundo

dá pena e medo essa sua identidade
tão frágil performance da força
você não consegue
ser melhor que isso?

segunda-feira, 27 de março de 2017

eu e o medo

a cada momento
nasce um novo medo

ele me olha, medonho
e treme amedrontado

é que nem todos os filhotes: indefeso
e o mundo é dele

eu saio correndo e o medo vem atrás
me querendo

até que ele cresce
tanto que eu nem o vejo
e vai viver sozinho

o mundo é habitado
por medos emancipados

eu fico tranquilo
andando entre eles
não tenho mais susto

até que à frente
(até tinha esquecido!)
outro medo aparece

e a gente começa
tudo de novo

quarta-feira, 15 de março de 2017

os livros novos
estão ficando velhos

olha como essa página
cheirada em livraria agora há pouco
amarela

uns pontos de fungos
denunciam o trópico
o mau uso
as mudanças de casa em malas improvisadas

os livros são rápidos

enquanto meu ciático dá sinais de cansaço
enquanto as costas pedem alongamento periódico
enquanto a joanete cresce e me dá medo de estourar os sapatos

os livros
sem aviso
feito um retrato guardado na prateleira
adiantam a morte
indiferentemente
o pé
de café
do quintal
foi tomado
por uma planta
trepadeira de flores
roxas e gordas que se abrem
de manhã e se fecham à tarde

agora
ele pende sob o peso
dessa amiga e inimiga

à gravidade
ambas podem despencar
a qualquer momento

e as flores brancas do café
embaralhadas no lilás que empalidece
vão secar e apodrecer na chuva e no sol

que metáfora
óbvia
da vida

sábado, 25 de fevereiro de 2017

não sei que mistério de sinapse
ou descaminho químico
que os médicos persigam sem sucesso
me impede a alegria nos dias da espécie

seminários acadêmicos
pensam a psique do capitalismo contemporâneo
negros servem brancos
melhores roupas que possuem

um homem mais velho
me diz que nada vale a pena
e não me deixa concordar

mas o amor
esse algodão encharcado de sangue quente
coagula, como o sol é bonito!

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

pôr mais palavras conservar
elas em pixels em papéis
pra que fiquem pegando
a poeira do futuro

sejam depois resgatadas
relidas e revocalizadas
sintético documento de morte

não basta ter células molhadas
e um seco no osso
que insiste?

um corpo feito inteiro
de dedo e de garganta
vai dizer a que veio