segunda-feira, 30 de maio de 2016

a burrice

"Pergunta: A burrice é um mal incurável?

Clarice: É sim, mas pode-se atingir a inteligência da pessoa burra através do coração."

os vivos e os mortos

os vivos se encontram só por acaso

ricocheteiam nas paredes do que não acontece e eventualmente se trombam

os mortos circulam com mais malemolência

salpicam sua não existência em cima de nós que estamos vivos

nem percebemos que estamos cobertos de mortos

cercados por eles, fincados no seu chão

que é um chão móvel e gasoso

como uma nuvem

a biblioteca sem átomos

eu tenho na cabeça uma biblioteca de livros que só existem na minha cabeça e não vão encontrar nunca a prateleira de uma biblioteca concreta

nem sempre escritos por mim. alguns são de amigas e amigos. de gente morta e desconhecida. sou um editor prolífico

quando estou triste ou sem ter o que fazer, vou na biblioteca pra passear. fazia isso quando era adolescente e foi assim que descobri muita coisa. às vezes a biblioteca é a da minha cabeça

folheio as páginas inexistentes e volto de lá com mais fôlego

quando eu morrer, toda essa biblioteca vai desmoronar, transformar-se numa bola de fogo frio e invisível, não vai sobrar um átomo dela cuja história possa ser rastreada

é possível que alguém que leia estas linhas, então, me transforme em autor ou biografado ou editor de algum ou de alguns dos muitos livros que nunca sairão da biblioteca da sua própria cabeça

os livros têm uma vida que vai além da gente e a nossa vida vai além por causa deles

eles têm um jeito muito próprio de circular

quinta-feira, 26 de maio de 2016

os grandes mamíferos

uma confluência de químicos nativos da minha boca

me faz perceber a aspereza da língua a gengiva sangra

tenho medo dos cânceres escondidos a cada manhã

e de ser tão mau poeta quanto o presidente do Brasil

mas o medo não determina as minhas mordidas

atravesso as avenidas da cidade num ônibus que mal posso pagar

sobre rios fedidos da merda humana industrial dois mil e dezesseis

encontro amigos que limparão minhas feridas se o sarcoma me comer

nunca contei os dentes da minha boca e nem preciso

não conto os anos os dias são todos futuros

a vida se prende à jugular do passado estraçalha seu corpo gazela

frágil pulando nos prados o futuro é carnívoro

e os versos testemunham a cena são grandes mamíferos

terça-feira, 24 de maio de 2016

a vida é pouco o tempo o que dura
a cartilagem da rótula do joelho cuja pele
você lambe esquecido do quão é breve
a língua dura mais que a ossatura

domingo, 22 de maio de 2016

encontro
as gengivas presas aos dentes

as tendinites doem
em lembrança do corpo sem gozo

esse acúmulo
de átomos que juntos não importam mais átomos

seus espaços vazios se tornam
líquidos, artérias, presságios

encontro
indesejado

segunda-feira, 16 de maio de 2016

o dia e a noite se seguem
e nunca se alcançam

os nossos avós acreditavam que a noite assassinava o dia todo fim de tarde e reinava tranquila até que o dia voltava à vida e a assassinava e assim sucessivamente

hoje a gente sabe que a morte e a violência são especificidades cósmicas nossas o espírito de  Deus paira sobre a camada de ozônio e a luz corre mais do que qualquer outra coisa

mesmo assim o dia e a noite se seguem
e nunca se alcançam

domingo, 8 de maio de 2016

dia das mães

A gente tem essa dor de ter nascido

entre cortes e fezes e gritos

extraídxs de dentro uns das outras

rompem-se as cordas da unidade e o próximo

menos que um século será gasto

só e tentando reatar em nó

a mucosa da memória de um conforto

ainda antes eu um ovo

sem pinto

paciente

célula caudada descartável na bolsa

apêndice do homem minha origem

e antes

espirais de proteína emaranham-se no tempo

quando a primeira molécula mão de Deus

começou esse caminho acidentado em direção

a este um metro e oitenta e quatro de futuro esqueleto seco

das mucosas e melecas das metades abortadas

maternas

os fios atados não se tocam o que nos une

é só o espaço sem tempo

entre a gente.