terça-feira, 3 de julho de 2018

prematuro

Nasceu e pronto: tá preso. Nem médico nem maçarico conseguiram cortar o cordão umbilical. Ficou a tripa seca atada entre os meios, a mãe amaldiçoando eventualmente o momento da concepção e do parto, "ai se eu soubesse", mas não sabia e pensando bem, ou se proibindo de pensar, o amor materno é maior do que qualquer adversidade. Ele não.

Ele ia se enrolando nessa corda que não só não caía: aumentava. As pessoas ignoram como são abençoadas. Mesmo as gêmeas siamesas: pelo menos não têm a ilusão sempre frustrada: da independência. Individualidade, como você quiser chamar. E tropicava; num descuido a coisa vinha pro pescoço; podia tecer um suéter com aquela lã áspera de sangue coagulado; mas nada, nada adiantava.

Depois de recusarem muitos convites pra aparecer na televisão, e porque ela já estava velha e cansada e a vergonha dele só crescia, foram morar numa caverna. Imagine uma caverna no cerrado brasileiro. Com os calangos e as cobras comendo-se harmonicamente, em volta. Passaram anos.

A mãe morreu. Inchou, se decompôs, secou, e nem assim. As cidades não tão distantes contavam a lenda do ermitão preso a um esqueleto que vinha sequestrar as crianças malcriadas. Ele viveu trezentos anos. A mãe não era mais que um fêmur com alguns ossos indistintos em chocalho quando enfim o cabo de guerra acabou. Tuf, como se tivesse sido fácil, assim, desde o começo. O homem velho e barbudo olhou bocó a liberdade impossível, de repente entregue sem motivo. Ficou umas horas parado, sem saber pra onde ir. Então se agachou e recolheu os ossos. Se tivesse lágrimas, chorava. Se pudesse morrer, tombava ali mesmo, e seu futuro seria seco e desmembrado como a mãe. Qual era mesmo o nome dela? Tinha a lembrança vaga de umas bochechas gordas levantando-se em sorriso. E de um perfume estranho, fresco, parecido com lavanda.

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