quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Novas histórias do detetive Cachorro

Eu queria ser escritor e virei escritor. Eu queria ser detetive e virei detetive. Mas eu nunca quis ser cachorro.

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Virei um escritor que escreve "nunca quis". Tudo bem, não quero ser perfeito. Nunca quis, rs. E um detetive bem medíocre. Quatro casos solucionados por cada dez investigados. Mas a pulga, no entanto, está sempre atrás da orelha.

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Ela entra no escritório. A fumaça do cigarro sobe do cinzeiro em torvelinhos pelo ar. Tailleur vermelho, chapeuzinho desabado, talvez preso com um grampo. Sou muito perspicaz. Ela me olha confusa. Eu paro de me lamber e digo: pode sentar, neném.

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Vou anotando no meu bloquinho. Sou um escritor sem medo do "-inho". E um detetive sem memória. Fala mais devagar, neném. Onde? Hm-hm. Calma, respira. Entrego o lenço pra ela. O broto acaricia a minha pata distraída, mas sensualmente, ao pegar o meu lencinho. Seus olhos úmidos me alcançam de uma distância longínqua. É, isso mesmo, "distância longínqua". Mas chega disso, detesto metalinguagem. O broto me devolve o lencinho com um suspiro de alívio e um pedido final. Depois, ajeita o chapeuzinho, a cadeira range ao se aliviar do peso da moça, e a porta range ao deixar passar o perfume doce da gardênia que desaparece corredor afora.

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Tranco a porta e saio para a rua. Mijo no primeiro poste que vejo enquanto penso: a mãezinha sumida, o armazém abandonado, o perfume de gardênia e essa cidade que fede a urina. Consolo o meu focinho com a pista concedida: a última calcinha usada pela mãe. Olho em volta, trânsito, pessoas apressadas. Esta cidade não é lugar para uma mãezinha se perder.

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Vou anotando no meu bloquinho as sensações que farejo no caminho. O armazém fica só a três quarteirões do meu escritório. Sinto um cheiro de emboscada. Mas nunca quis estar a salvo. Viver é muito, muito desconfiado.

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Passo por Dolores, o broto da floricultura. Olá, neném. Dolores sorri, indecifrável como sempre, e deixa à mostra a cornucópia de cores cheirosas que abraça a entrada do estabelecimento. Ah, se Dolores fosse uma cadela, o rabo levantado oferecido ao meu focinho úmido. Aperto a calcinha no bolso do sobretudo e respiro fundo: falta só mais um quarteirão.

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Os cheiros se confundem a cada passo. Preciso cheirar de novo a calcinha usada da mãezinha sumida. Aqui, nesse pelo crespo entrelaçado à trama de renda, mora uma metáfora poderosa. Queremos o caminho do útero, mas só temos vestígios porcos. Anoto rápido no meu bloquinho, senão esqueço. "Queremos o caminho do útero, mas só temos vestígios porcos..."

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As imagens de Dolores sorrindo, da cornucópia se abrindo e do chapeuzinho combinando com o tailleur se esvanecem quando vejo o galpão cinza e sinistro incrustado no centro de um quarteirão vazio. Guardo minha caneta bic no bolso do sobretudo e coço a orelha, um tique que tenho quando percebo que um caso vai se solucionar. Corro atrás de um rato que corre entre um bueiro e outro e que se assusta com meus latidos. Ratos, essas metáforas fugidias.

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O cheiro de gardênia se acentua na entrada dos fundos do armazém abandonado. A calcinha no bolso do sobretudo parece esquentar, na certa reluz no escuro da minha roupa. É um sinal de que a mãezinha está próxima. O lugar me traz lembranças sombrias de um lugar distante, longínquo na memória, do qual não quero me lembrar. O broto do tailleur vermelho de repente me parece muito, muito familiar.

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De costas para mim, sentada numa cadeira solitária em meio ao vasto galpão sombrio, a silhueta de uma mulher exala o cheiro que eu vinha seguindo há tantos quarteirões. Meu coração parece acelerar mais do que o possível. Um ganido toma forma de grunhido à medida que avanço em direção a ela. Senhora? Senhora?

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A mãezinha se levanta e olha na minha direção. É a própria moça do tailleur vermelho. Eu reconheço seus pentelhos crespos, porque a moça está nua. Que jogada macabra foi tramada pelo broto? Que papel eu exerci em sua peça de cartas marcadas e misteriosas? Uma gardênia azul brota insolente do meio do jardim de pelos da moça agora sem tailleur, e uma gargalhada preenche o espaço amplo e vazio desse galpão cinza, maldito, erguido sobre esgotos e ratos fétidos, fugidios.

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Eu nunca quis ser escritor. Nem detetive. Mas fazia tempo que eu queria essa coleira antipulgas que chegou agora pelo correio. A fumaça do cigarro sobe em espirais pelo ar. A distância mais próxima entre dois pontos é uma linha curva, infinitamente torcida sobre si mesma. O broto de tailleur vermelho bate na porta e pergunta se pode entrar. Embaixo dessa saia eu sei que ela está usando a mesma, tortuosa, calcinha. Eu digo: sente-se.

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