sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

antifagia

espalho veneno na minha pele
pra espantar os animais que me querem

uma forma fundamental de vigília
negarmo-nos como almoço dos outros

ingiro anualmente litros de agrotóxico
na mesma esperança de não virar comida

que tal se nos deixarmos sem cuidado
como bichos e minérios, como musgos?

domingo, 18 de dezembro de 2016

domingo

o cachorro lambe as feridas na garagem
via streaming tudo é tão mais fácil

este é um dos muitos domingos
passados com consciência do calendário
minhocas decompondo coisas no escuro
uma bola de fogo imperdoável lá no céu

tudo indiferente
e igualmente
importante para a vida no planeta

exploro meus próprios claros e escuros
são minhas feridas a vida a garagem
e quando passo pomada no pus do cachorro
falo com ele em palavras que ele não entende

tudo que quero
é que você dure
cachorro
com uma vida não tão dura

ele me olha grandes globos lacrimosos
depois vira as costas
deita longe
ele se morde o quanto pode

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

as antiaventuras de super-ninguém

sempre infeliz
com tudo que existe debaixo do seu nariz
o Super-Ninguém

atravessa os prédios e os tédios
em busca de aventuras

em sua companhia
seu fiel escudeiro
o Nada Cachorro
se coça e fareja
e se lambe o dia inteiro

que perigo
encontrará
nosso herói
nesta tarde de sol?

desce
do céu
uma nave!
é a nave
do Planeta Nada
de onde há cinco anos
o Super-Ninguém trouxe
seu fiel Nada Cachorro

quem poderá
ajudar
defender
o Planeta Terra
de semelhante invasão?

eis que
SUPER-NINGUÉM
e
NADA CACHORRO
surgem sorrateiros
no meio do caos
da multidão

seus superpoderes
são não ser nada
nem ninguém
nem pássaro e nem avião
Discretos Salvadores do Universo

a cidade
ruidosa como uma ferida
não percebe o perigo
dessa nave invisível

com seus superpoderes
Super-Ninguém
desafia os inimigos
para uma batalha

mas um raio de luz
sem aviso
cai sobre o Nada Cachorro
e o leva levitando
pro vácuo do espaço

Super-Ninguém
pula e chora
liga pra polícia
mas a polícia não dá bola
e nada detém
o recado alienígena

sozinho
derrotado
Super-Ninguém
se recolhe e junta forças
para a próxima batalha

domingo, 4 de dezembro de 2016

morreu o poeta ferreira gullar

na vida a gente só fica
aprendendo a viver
mastigar posar pra foto

cair e ficar de pé quando dá
e a melhor posição
pra dormir

quando a gente morre
todo mundo pega o nosso corpo
e faz o que for esperado

põe jornais embaixo do cadáver
vela e choro e enterra
o morto, seus aprendizados

no escuro em sossego
a matéria fervilha
e os vermes ensinam

agora a estar
de acordo com o nada
orgânico de tudo

sábado, 3 de dezembro de 2016

hóspede

que
apertada
e folgada
calada
na lava
da lábia
e molhada
só sim
sem não
aberta
colada
na calefação
parede
macia
que espasma
essa boca
te sirva
de casa
quanta
coisa
quântica

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

enquanto os cachorros dormem nas tocas de madeira lixada
simulacros de casas bucólicas
azulejos e água sanitária meus ácaros
em maior número que todos os dias da minha vida
lençol que não se troca
o mundo é uma virilha
que bom

seus fungos suas assaduras
a pele que não se acostuma
ao toque do dedo estrangeiro e estremece
corpo inteiro aterro sanitário casa dos ratos da alma irmão burro
ninado na imundície e na satisfação melhor essa coceira
esse furúnculo que sente do que o nada
nunca sujo do que a ideia
asséptica de ascese espírito
com sua coceira
incoçável

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

escrever sendo um corpo que dorme

já é a quinta ou quanta vez
que à beira do escuro
de mim durante o sono

penso em um verso, e logo
em outro
as palavras se encaixam perfeitas

mas o corpo
junto com a cabeça
não deixa

que eu me levante
acenda a luz, pegue o caderno
ou mesmo ligue o celular

e na luz do quarto escuro
escreva
essa beleza, essa fresta

de paraíso num relance
aberta
no fechado do meu inferno

então eu durmo
um pouco é só preguiça
outro tanto é só vontade

de nunca mais acordar
pras palavras amanhecidas
atrasadas

mas eu acordo
(até agora)
e quando acordo

não me lembro
do verso que se mostrou
em aleph pleno

penso
que adolescente
eu não perdia essas oportunidades

e varava a noite
em fúria
explorando cavernas em cadernos

já hoje
fico triste
de ter perdido o verbo

e me conformo
porque afinal
dormir era mesmo

mais preciso
mais eficaz
e mais legal