quarta-feira, 16 de abril de 2014

Risco atrás de cada porta
um quarto acordado espera
a fossa a fera agarra
a foice e corta o sonho
dos fãs da banda morta
véu de vinil a noite
do não saber

Asfalto com pressa o carro
tropeça nos ossos que leva
dentro contra o que
querem a noite não
sabe o que esconde
enterra atrás dos olhos
que dormem

Caminho na treva da lâmpada
acesa de insônia silêncio
gritando lá dentro um cachorro
devora os restos do corpo
vivo mutilado decomposto
semente de noite que brota
cada rosto
a noite é um
bicho dentes
mastigando o
pescoço do
dia que eu
sou até que
a noite seja
mais

eu e crie
dentes bicho
que masque
a artéria do
dia de outrx
garganta
tudo etc
noite

domingo, 13 de abril de 2014

processo criativo

queria que cada bloco pudesse ser resumido num número de páginas meia dúzia de links "taí o que me aconteceu de 2011 em diante" fecha a conta passa pro próximo bar, um garçom cansado atende os pedidos a esta altura eu já tenho outra vez

sede e fome, começa tudo de novo: os sabores os porres, lidar com a conta, encontros, amigos e bêbados inconvenientes, uma chuva nos prende debaixo do toldo que cai e os baldes com a água pra fora amanhece sabão escorregando os nossos pés,

no bar todo caso é igual, meu caso é mais um, é banal

mas preste atenção por favor: então digo outra vez "taí o que me aconteceu desde", completa datas e outra partida, mesa, esquina

*

deus me livre das lombadas dos códigos de barras do anonimato do clube de leitura do prêmio quelônio do dinheiro dinamite de ser reconhecido na fila do mercado de ser encontrado semidecomposto num quarto solitário comido pelo gato indigente cercado de parentes da tristeza perpétua da vontade de viver de ter muitos amigos de não os ter ganhar biografia direitos autorais esquecido pelas traças do banco de dados dos homens do tempo de continuar aqui agora pra sempre escrevendo de não ter o que escrever amém, seja o que for, amém

*

quando descobrir
outro planeta
a sucessão de letras
pra que serve

vai se sentir
um tanto tonto
"ah era isso"
"se eu soubesse"

fecha a conta
bate o ponto
não paga e some

dos desejos
e de todos
os outros

*

enquanto isso
mais ou menos
sete bilhões de pessoas
estão vivendo

segunda-feira, 7 de abril de 2014

A noite do não saber

Se ela desse um nome ao bicho, chamaria de Rigor. Todo ser humano tem direito a um nome, felizmente os bichos não nos conhecem, passam a vida sobre suas patas com o focinho à frente, ao menos grande parte deles, e nenhum é muito rigoroso a não ser com seu próprio acaso, traçado longe da gente. Aquele morreu antes do nome. A dona, que não era dona de mais ninguém, talvez de si, após chorar, concluiu que precisava de outro gato, antes que precisava enterrar aquele, antes que não adiantava dar um nome - e tão original - a algo que não atenderia, e em algum lugar no meio pensou: mas pra que qualquer coisa tem um nome?

Chamou-se à noite pra ter certeza de que ainda estava ali. Num apartamento só dela, entre paredes que ao breu não importa o quanto estão decoradas, fecha os olhos e subtrai-se não importa muita coisa, uma boa noite de sono, Clara. Chama, sussurra de novo. A quem responder se é só você? Perdeu-se no sono e depois amanheceu e voltou a anoitecer, ela insistentemente viva, tão sem gato. Pano rápido, novamente um colchão, a cidade lá embaixo sem controle, ouve chamarem-na no escuro era seu pai, um grande gato amarelo e gordo, imóvel confortável, prendendo-a sob a pata macia o rosto dela, um susto acorda. Vai cair do prédio, vai mudar, vai seguir vivendo ali com muitas outras histórias algumas permanecem, sucessão de amanheceres, um dia seu nome na boca de outro, deixe o gato descansar em paz.

domingo, 6 de abril de 2014

Laços de família

Essas eram as coisas que eu tinha na minha casa:
um gato e sapato
um cachorro bobo
uma vó cheia de dó
um vô dizendo alô
uma mãe um mamão
um pai um ai
teto parede comida roupa
cansada

*

Dormiu abraçado no sapato do pai depois que morreu, o pai, tinha vários sapatos, tirou-os do armário, escolheu um bonito, preto, grande e brilhoso. Beijou, lambeu, chorou, dormiu. Sonhou que o pai andava descalço no céu. Sonhou com a frieira do pai doendo na garganta. Sonhou com chutes gostosos na virilha. Sonhou que calçava aquele sapato enquanto a terra caía, em pancada, sobre a tampa do caixão.

*

Encoxou a mãe no tanque. Bateu na mãe por causa de mistura. Vendeu até a mãe. Jogou ela de perna aberta. A mãe rolou morro abaixo. Ficou sozinho na casa olhando o cadáver da mãe decompondo lá embaixo. Entrou em casa para tomar café, agora não havia quem fizesse café pra ele. Pensou em casar. Isso sim resolveria o problema. Desceu o morro, pôs véu e grinalda na mãe. Núpcias, vermes, felizes, para sempre.

*

Meu irmão é treze anos mais novo do que eu. Eu tenho vinte e cinco, ele tem doze. É nessa idade que começa. Enquanto ele dorme, desvisto ele, finge que dorme, fico molhada ele duro, pequeno, entra. No dia seguinte seus olhos baixos. Mostro os seios quando ninguém mais estiver vendo. Ouço ele chorando de noite quando abro a porta. Repito. Chorando, endurecendo.

*

Aquela é filha de chocadeira. Xs vizinhxs comentam quando sai de sainha e anda a rua. Desavergonhada, a própria esquina de casa. Entra no quarto carro que para. O gato dorme sobre a cama. Me conta de você. Perdi meus pais faz seis meses num acidente de carro. Ele mete, ela recorda. Tá gostando? Não mente: tô. Quando volta, o gato acorda, tira a roupa, deita na cama que era dos pais. É, até que tô gostando mesmo.

*

Agora faça você mesmx: conte quinze histórias de afeto inocente. Satisfaça-se

quinta-feira, 3 de abril de 2014

como eu, inúmeros, todos com dedos
esmagaram formigas na mesa
ou no chão que por maiores que sejamos
nos apegamos como elas, e elas
como nós, continuam
aparecendo não se sabe de onde
animais povoando-se mutuamente
a vista, o medo, a morte

que companhia a nossa

tão juntos e diferentes
ora afeto ora irritados com os efeitos
que acontecem
ou poderiam acontecer
entre as espécies, sujeiras e doenças
a casa esburacada não queremos
compartilhar com mais ninguém

no entanto, penso, matando-as
percebo como deve
ser pro tempo olhar pra gente
à mesa caminhando sobre a terra
esmagados igualmente por seus dedos
depois indiferentes ressurgindo,
um só animal que prolifera