terça-feira, 20 de outubro de 2015

um fio duplo
ou nenhum fio

a máquina no ar
ou na mão

sua voz baixa
ou apertada

entre as cordas
e a corda

*

a hora da mulher
de desligar a própria vida
passa pelo pescoço
e a maçaneta da porta
dá voltas na base do fone de ouvido
entre os gritos dos filhos

alcança a extensão
da rede de telefonia de uma cidade
com meio milhão de habitantes
um mundo com número indefinido de gente
quantas pessoas neste momento também
estão se matando

discagem pra um número conhecido
eu sou o filho da amiga
que não pode atender
porque está ocupada com outras amigas
e você não quis deixar
um recado

*

o tempo todo estamos deixando recados
quando desligamos sem dizer quem somos
ou nos matamos num quarto fechado
quando trazemos a irmã de São Paulo
pra um churrasco

quando a dívida acumulada faz perder
a casa e a loja da família e abandonamos
o marido e os parentes na Coreia
com três crianças pequenas nos instalamos no interior do estado
sem saber que dali a quinze anos
tudo isso vai ter fim

e as pessoas vão dizer
que não era necessário
mas que o jeito dos orientais de lidar com o desespero
é mesmo drástico
e que Deus, entre os pecados, tem tudo
planejado

*

os olhos e as mãos sobre cadáveres e moribundos
nunca me apresentaram a morte com a mesma presença
que a voz trêmula ainda viva me alcançando acaso no telefone
e eu não sabia

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