terça-feira, 10 de novembro de 2015

O amor e eu

o amor entra numa fria. Estávamos nós dois, eu e o amor, na porta da geladeira, a gente estava. Olhando pra dentro como quem vê a si mesmo. E sem se enxergar. Então um litro de leite agarrado em caixinha na mão, camadas de papel e cola e alumínio, um copo vazio em cima da pia. Depois o líquido branco, insuspeito, passado na água sanitária. O amor toma o primeiro gole, tem um troço e morre.

*

O velório do amor foi o mais triste que você já viu. Deitado em caixão fechado, sem enfeites de flores, sem a roupa escolhida pela família. Eu morri e minha mãe comprou um terno e eu queria ser enterrado com a camiseta dos Ramones, mas não protestei. Eu e o amor em cemitérios diferentes, porque as nossas famílias não querem dar pinta. A camiseta dos Ramones empesteou o armário e a casa e a lembrança que minha mãe teve de mim. Secou à sombra, o instinto materno: tudo que ela queria era um filho no sol, limpo e insuspeito. Mas eu bebi a água sanitária. Fui enterrado fora da cidade.

*

Jesus me recebe de braços abertos, nas mãos as feridas purulentas que ele limpa no meu terno. A gente se abraça e eu enfio o nariz no peito magro do Cristo / sinto um cheiro de guardado, coitadinho. O amor, ele me informa, foi destroçado nos trinta círculos do Inferno. Trinta e um, agora. Eles aumentam. Jesus põe o braço ossudo sobre o meu ombro gordo e me mostra esse novo lar: o Paraíso. Simulacro de coisas do mundo, mas envolvidas numa luz clara, terrível. Enfim ele me deixa debaixo de uma figueira e eu adormeço. No meu sonho de espírito sem corpo, encontro outra vez o amor. Sinto o toque morno dele no meu rosto. Estamos num quarto escuro e alegre, longe de todas as coisas. Aqui tem um cheiro podre, de coisas apodrecendo. Eu e ele apodrecemos. Nunca fomos tão felizes.

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