Nasceu e pronto: tá preso. Nem médico nem maçarico conseguiram cortar o cordão umbilical. Ficou a tripa seca atada entre os meios, a mãe amaldiçoando eventualmente o momento da concepção e do parto, "ai se eu soubesse", mas não sabia e pensando bem, ou se proibindo de pensar, o amor materno é maior do que qualquer adversidade. Ele não.
Ele ia se enrolando nessa corda que não só não caía: aumentava. As pessoas ignoram como são abençoadas. Mesmo as gêmeas siamesas: pelo menos não têm a ilusão sempre frustrada: da independência. Individualidade, como você quiser chamar. E tropicava; num descuido a coisa vinha pro pescoço; podia tecer um suéter com aquela lã áspera de sangue coagulado; mas nada, nada adiantava.
Depois de recusarem muitos convites pra aparecer na televisão, e porque ela já estava velha e cansada e a vergonha dele só crescia, foram morar numa caverna. Imagine uma caverna no cerrado brasileiro. Com os calangos e as cobras comendo-se harmonicamente, em volta. Passaram anos.
A mãe morreu. Inchou, se decompôs, secou, e nem assim. As cidades não tão distantes contavam a lenda do ermitão preso a um esqueleto que vinha sequestrar as crianças malcriadas. Ele viveu trezentos anos. A mãe não era mais que um fêmur com alguns ossos indistintos em chocalho quando enfim o cabo de guerra acabou. Tuf, como se tivesse sido fácil, assim, desde o começo. O homem velho e barbudo olhou bocó a liberdade impossível, de repente entregue sem motivo. Ficou umas horas parado, sem saber pra onde ir. Então se agachou e recolheu os ossos. Se tivesse lágrimas, chorava. Se pudesse morrer, tombava ali mesmo, e seu futuro seria seco e desmembrado como a mãe. Qual era mesmo o nome dela? Tinha a lembrança vaga de umas bochechas gordas levantando-se em sorriso. E de um perfume estranho, fresco, parecido com lavanda.
terça-feira, 3 de julho de 2018
segunda-feira, 2 de julho de 2018
quinta-feira, 28 de junho de 2018
estou preso na vida
com cordas de nailon
com teias de aranha
a vida me prende
me gruda me pesa
com fórmulas físicas
eu caio na vida
do alto de um prédio
com tédio e boletos
com barras de ferro
estou preso na vida
sem rota de fuga
sem jeito estou preso
sem saída na vida
um trem que não para
um tiro no escuro
um jorro de mijo
uma jarra se quebra
um relógio parado
ou funciona pra sempre
eu preso na vida
em sala de espera
esperando uma porta
aberta
com cordas de nailon
com teias de aranha
a vida me prende
me gruda me pesa
com fórmulas físicas
eu caio na vida
do alto de um prédio
com tédio e boletos
com barras de ferro
estou preso na vida
sem rota de fuga
sem jeito estou preso
sem saída na vida
um trem que não para
um tiro no escuro
um jorro de mijo
uma jarra se quebra
um relógio parado
ou funciona pra sempre
eu preso na vida
em sala de espera
esperando uma porta
aberta
quarta-feira, 16 de maio de 2018
domingo, 13 de maio de 2018
terça-feira, 8 de maio de 2018
quarta-feira, 11 de abril de 2018
se nada mais der certo
os dentes dos cachorros
o que pode dar errado
rins e outros órgãos
a morte nunca é prematura
mas faz falta
o cachorrinho
quando morre
parentes e amigos uivam
a lua é uma pedra que cresceu demais
se desprendeu
e não consegue ir nem ficar
eu também me sinto assim
cheio de dentes precários
pulgas e satélites
se nada mais der certo
mesmo se eu ficar banguela
que eu me lembre de
mordê-los
os dentes dos cachorros
o que pode dar errado
rins e outros órgãos
a morte nunca é prematura
mas faz falta
o cachorrinho
quando morre
parentes e amigos uivam
a lua é uma pedra que cresceu demais
se desprendeu
e não consegue ir nem ficar
eu também me sinto assim
cheio de dentes precários
pulgas e satélites
se nada mais der certo
mesmo se eu ficar banguela
que eu me lembre de
mordê-los
segunda-feira, 2 de abril de 2018
quando acaba
quando acabar
um peixe sempre em movimento
a água do mar
efeito borboleta
os átomos da estátua
quando
acabar
você acha que o corpo parado
e pronto
ponto
é isso?
essa dor é músculos atentos
resposta às agulhadas do momento
o corpo infla e os vermes comem
tudo vira chorume e se revira
no túmulo
quando acabar
que onda
vou viver?
que susto
vou levar?
que sorte
não vou ter?
depois do fim
qual fim
vai se mexer?
quando acabar
um peixe sempre em movimento
a água do mar
efeito borboleta
os átomos da estátua
quando
acabar
você acha que o corpo parado
e pronto
ponto
é isso?
essa dor é músculos atentos
resposta às agulhadas do momento
o corpo infla e os vermes comem
tudo vira chorume e se revira
no túmulo
quando acabar
que onda
vou viver?
que susto
vou levar?
que sorte
não vou ter?
depois do fim
qual fim
vai se mexer?
sábado, 24 de março de 2018
a verdade
vagabunda
não arranja emprego
pede esmola
ganha um prato de comida
e larga
porque não gosta da mistura
vaga
pelas ruas mal cheirosa
e escondida
apanha da polícia
da gangue neonazista
e nunca ganha uma carícia
minto
a verdade
tem cachorros
vários
soltos e amarrados
todos sujos e cheios de pulgas
todos eles vagabundos
companheiros
seguem ela
lambem ela
protegem ela
eu sou um cachorro da verdade
vagabunda
não arranja emprego
pede esmola
ganha um prato de comida
e larga
porque não gosta da mistura
vaga
pelas ruas mal cheirosa
e escondida
apanha da polícia
da gangue neonazista
e nunca ganha uma carícia
minto
a verdade
tem cachorros
vários
soltos e amarrados
todos sujos e cheios de pulgas
todos eles vagabundos
companheiros
seguem ela
lambem ela
protegem ela
eu sou um cachorro da verdade
a dor é mais profunda
mas pomada ajuda
sim
massagem
remédio
deitar no divã
nada resolve
mas ajuda
nada chega
mas surfa
nas ondas da dor
profunda
a morte
é uma âncora que enfim
te afunda
ou é um troço
que te dissolve
e te arrebata pro alto
pra longe da superfície
e mais ainda
do fundo?
ou te transforma
num pato de borracha
perdido na ciranda das correntes
até que empata
numa praia?
meu deus
existirá alguma praia?
brisa
doce
notícia
tudo ajuda
a dor é tão funda
é tão lá no fundo
- ela nem te conhece
mas pomada ajuda
sim
massagem
remédio
deitar no divã
nada resolve
mas ajuda
nada chega
mas surfa
nas ondas da dor
profunda
a morte
é uma âncora que enfim
te afunda
ou é um troço
que te dissolve
e te arrebata pro alto
pra longe da superfície
e mais ainda
do fundo?
ou te transforma
num pato de borracha
perdido na ciranda das correntes
até que empata
numa praia?
meu deus
existirá alguma praia?
brisa
doce
notícia
tudo ajuda
a dor é tão funda
é tão lá no fundo
- ela nem te conhece
domingo, 11 de março de 2018
minha avó separava as folhas de almeirão
metade para o caldo do meu vô
metade pra gaiola do canário
amarelo, ele cantava de alegria
meu vô na poltrona marrom
também ficava contente
aprendi com isso que somos iguais aos passarinhos
explique a comparação como bem entender
hoje tiro
desse maço amargo
essa lembrança boa
e tomo minha sopa cantando
por dentro
na gaiola do peito
metade para o caldo do meu vô
metade pra gaiola do canário
amarelo, ele cantava de alegria
meu vô na poltrona marrom
também ficava contente
aprendi com isso que somos iguais aos passarinhos
explique a comparação como bem entender
hoje tiro
desse maço amargo
essa lembrança boa
e tomo minha sopa cantando
por dentro
na gaiola do peito
sábado, 10 de março de 2018
cemitério são joão batista
te vi
pedras que sobem do asfalto
e subi também
até chegar perto
de um platô de uma cabana
onde invadia a intimidade de pessoas
empoleiradas no alto, sem cercas
talvez sem intimidade
então desci alguns degraus e contemplei
a cidade
maravilhosa
com lápides até onde o olho alcança
bustos que não me importam
nomes que não me dizem
o espanto de não encontrar
abacaxis e rendas no túmulo de Carmem Miranda
só uma assinatura dourada e discreta
assim
será a morte pra nós todos
apesar das estátuas de mármore que se encomendam
mas que ruem ao menor
terremoto tsunami guerra intergalática
essa linha fina e brilhante
refletindo o calor e a luz
de um sol que não descansa
enquanto
estivermos aqui?
pedras que sobem do asfalto
e subi também
até chegar perto
de um platô de uma cabana
onde invadia a intimidade de pessoas
empoleiradas no alto, sem cercas
talvez sem intimidade
então desci alguns degraus e contemplei
a cidade
maravilhosa
com lápides até onde o olho alcança
bustos que não me importam
nomes que não me dizem
o espanto de não encontrar
abacaxis e rendas no túmulo de Carmem Miranda
só uma assinatura dourada e discreta
assim
será a morte pra nós todos
apesar das estátuas de mármore que se encomendam
mas que ruem ao menor
terremoto tsunami guerra intergalática
essa linha fina e brilhante
refletindo o calor e a luz
de um sol que não descansa
enquanto
estivermos aqui?
sexta-feira, 9 de março de 2018
o corpo fornece alento
pra essa vida feita de coisas
impossíveis de comprar
e outras, abstratas
que vão além dos cinco sentidos
com espanto e conforto
passo a língua no dente partido
sinto o ar massageando meu fígado
quando respiro algo que não vejo
é bom viver, ele me diz
contra todas as probabilidades
o inalcançável
não alcança
pra essa vida feita de coisas
impossíveis de comprar
e outras, abstratas
que vão além dos cinco sentidos
com espanto e conforto
passo a língua no dente partido
sinto o ar massageando meu fígado
quando respiro algo que não vejo
é bom viver, ele me diz
contra todas as probabilidades
o inalcançável
não alcança
quinta-feira, 8 de março de 2018
no grande esquema
conhece
a morte
que se aproxima
fareja
ela
pelo rabo
reconhece
e ela
corre pra longe
você
se distrai
com outros rabos
nesse cercadinho
em que o seu dono
te trouxe
pra brincar
no grande esquema
(o cercadinho)
a morte
é só
um outro
rabo
abanando
entre tantos
e quando
ela vier
já vai
ser hora
de ir
embora
a morte
que se aproxima
fareja
ela
pelo rabo
reconhece
e ela
corre pra longe
você
se distrai
com outros rabos
nesse cercadinho
em que o seu dono
te trouxe
pra brincar
no grande esquema
(o cercadinho)
a morte
é só
um outro
rabo
abanando
entre tantos
e quando
ela vier
já vai
ser hora
de ir
embora
quarta-feira, 7 de março de 2018
glória
procuro em poetas a companhia
que nos falta a todo mundo
páginas e manchas que se alastram
desde que a língua foi inventada
e a tristeza gutural dos bichos em tarde de chuva virou palavra
falha
e nessa falha
nesse vão
por onde cai qualquer um
que tropece ou que se jogue
é que brilha
a graça da falta
que glória
queda livre dos planetas uns em direção aos outros
e nessa bagunça de vácuos e matéria inanimados
uns encontros previsíveis na noite
é que me salvam mais do que qualquer
remédio mais do que qualquer
balão de oxigênio
mortos e vivos
somos todos
iguais
vivos ou mortos
estamos todos
juntos
que nos falta a todo mundo
páginas e manchas que se alastram
desde que a língua foi inventada
e a tristeza gutural dos bichos em tarde de chuva virou palavra
falha
e nessa falha
nesse vão
por onde cai qualquer um
que tropece ou que se jogue
é que brilha
a graça da falta
que glória
queda livre dos planetas uns em direção aos outros
e nessa bagunça de vácuos e matéria inanimados
uns encontros previsíveis na noite
é que me salvam mais do que qualquer
remédio mais do que qualquer
balão de oxigênio
mortos e vivos
somos todos
iguais
vivos ou mortos
estamos todos
juntos
terça-feira, 6 de março de 2018
não me deram nada do que pedi mas nem por isso fico reclamando
não me deram uns fones de ouvido
pra distrair da vida
como eu gostaria
que você saiu do útero
e por isso é tão nostálgico
é o que dizem
e reclama de barriga cheia
minha mãe
apontava pras crianças com fome e recomendava gratidão
mas não me deram nada do que eu queria
uma foice pra cortar cabeças
um dildo de estrelas
paz, justiça social
sozinho no quarto a morte a cada estalo de dedos
uns fones de ouvido
tocando alanis morissette
desde 1997
não me deram
e eu não pude
e não consigo
e não tenho dinheiro pra comprar
exércitos que resolvam
meus anticorpos ameaçados
orem por mim
em breve
prometo
continuo tentando
música pop
era de aquário
cabeças rolando
pra distrair da vida
como eu gostaria
que você saiu do útero
e por isso é tão nostálgico
é o que dizem
e reclama de barriga cheia
minha mãe
apontava pras crianças com fome e recomendava gratidão
mas não me deram nada do que eu queria
uma foice pra cortar cabeças
um dildo de estrelas
paz, justiça social
sozinho no quarto a morte a cada estalo de dedos
uns fones de ouvido
tocando alanis morissette
desde 1997
não me deram
e eu não pude
e não consigo
e não tenho dinheiro pra comprar
exércitos que resolvam
meus anticorpos ameaçados
orem por mim
em breve
prometo
continuo tentando
música pop
era de aquário
cabeças rolando
segunda-feira, 5 de março de 2018
passeio ao crematório
olha a fumaça
ele diz
os cachorros em volta
se cheirando nos cus
nem aí
as árvores e a grama
talvez esperem ansiosas
as cinzas que o ar anuncia
nutrição com vingança
os mesmos seres que me mutilam
traficam violam e matam
tostados agora eu os como
pelo rabo
eu volto pra casa com os cachorros
passando entre prédios construídos
com o esmero do dinheiro
essa pirâmide
papel metal bitcoins
tanto concreto
pra um dia
dispersar no vento
dez patas
que confiam no atrito
nos servem de transporte
até o portão
que inventa a cada pausa
a propriedade privada
isso
ele diz
também
passará
enquanto isso
aproveitem o sol
meus amigos
e o ar
repleto de moléculas
que um dia foram gente
cachorro
planta
como eu
ou vocês
sábado, 3 de março de 2018
escrever sempre como se fosse morrer
spoiler alert e se for viver pra sempre?
a intensidade é um fetiche do século vinte
escrever como se escrever fosse o bastante
como se bastasse estar vivo e morrer e escrever enquanto isso
dois palitos
para o fim do mundo
em texto escrito
viver como se tudo já estivesse dito
como conhecer a morte
morrer como se não tivesse vivido
como se tudo fosse alimento pra outro ser vivo
no grande esquema das coisas
escrever como quem come
spoiler alert e se for viver pra sempre?
a intensidade é um fetiche do século vinte
escrever como se escrever fosse o bastante
como se bastasse estar vivo e morrer e escrever enquanto isso
dois palitos
para o fim do mundo
em texto escrito
viver como se tudo já estivesse dito
como conhecer a morte
morrer como se não tivesse vivido
como se tudo fosse alimento pra outro ser vivo
no grande esquema das coisas
escrever como quem come
quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018
êxodo
deus
ou freud
ou a indústria farmacêutica
abriram um espaço seco
entre eu e o desespero
corram
caravanas de hebreus
com seus filhos e seus velhos lentos
antes que o mar se canse
ou cresça
ou desobedeça
os cavaleiros do mal
se afogarão com certeza
num castigo bem dado
(mas quem explicará que a ira
a indiferença ou a impotência
também condenem a inocência
dos cavalos?)
ou freud
ou a indústria farmacêutica
abriram um espaço seco
entre eu e o desespero
corram
caravanas de hebreus
com seus filhos e seus velhos lentos
antes que o mar se canse
ou cresça
ou desobedeça
os cavaleiros do mal
se afogarão com certeza
num castigo bem dado
(mas quem explicará que a ira
a indiferença ou a impotência
também condenem a inocência
dos cavalos?)
sábado, 27 de janeiro de 2018
terça-feira, 23 de janeiro de 2018
um nome nada singular
passada a vida
aos filhos às tarefas da cozinha
agora pinta quadros
dados como cria de gata
estradas de terra cercadas de flores
correm cavalos apenas imaginados
com pincéis sem jeito
anatomia falha
espalha sua obra assinada
um nome nada singular
quando termina outro bicho
bruto e belo querendo sair da tela
ao lado do saco de biscoitos
no silêncio da sala arrumada
sente o trote no peito
inspira a fumaça levantada
e abre passagem
para outra cavalgada
aos filhos às tarefas da cozinha
agora pinta quadros
dados como cria de gata
estradas de terra cercadas de flores
correm cavalos apenas imaginados
com pincéis sem jeito
anatomia falha
espalha sua obra assinada
um nome nada singular
quando termina outro bicho
bruto e belo querendo sair da tela
ao lado do saco de biscoitos
no silêncio da sala arrumada
sente o trote no peito
inspira a fumaça levantada
e abre passagem
para outra cavalgada
quinta-feira, 18 de janeiro de 2018
um fio separa lá daqui
ou uma parede de vidro
ou um muro de concreto
ou um oceano indiviso
ou aquela membrana morna
entre os músculos e os órgãos
entre o não e o verde vivo
um passo que não alcança
*
no final tudo tem fim
começo enquanto isso
um fio que separa o sim
e um corte que não descansa
amálgama de bobagens
com picos de importância
ou campos de capim
ou idas sem bagagem
*
ou rastros improváveis
de quem não fez viagem
ou cascos encobertos
de musgos imóveis
um fim me espera ao fim
paciente e autoritário
paterno como um delfim
filial feito um velório
ou uma parede de vidro
ou um muro de concreto
ou um oceano indiviso
ou aquela membrana morna
entre os músculos e os órgãos
entre o não e o verde vivo
um passo que não alcança
*
no final tudo tem fim
começo enquanto isso
um fio que separa o sim
e um corte que não descansa
amálgama de bobagens
com picos de importância
ou campos de capim
ou idas sem bagagem
*
ou rastros improváveis
de quem não fez viagem
ou cascos encobertos
de musgos imóveis
um fim me espera ao fim
paciente e autoritário
paterno como um delfim
filial feito um velório
segunda-feira, 15 de janeiro de 2018
insônia
uma companhia solitária une todas as pessoas insones do mundo
é muito diferente, eu sei, ter insônia no leito da rainha ou com a cabeça mal acomodada sobre as pedras. mas no fundo dos olhos abertos um mesmo assombro define a raça humana
quem foi a primeira pessoa que, ainda sem esse nome, estatelou na madrugada sem nenhum motivo além de um eco crescente na cabeça que badala: eu? nunca vamos saber. mas essa pessoa, ou quase, é tão eu quanto eu posso ser, agora às cinco da manhã, com medo de que o dia acorde sem que eu tenha ido dormir
o que nos une, um dna de ectoplasma, se você quiser, são esses gritos do silêncio, esse vácuo que ricocheteia na cabeça. é, em suma, o medo de não morrer: então o cansaço não vai me levar ao descanso? quando os olhos se fecham, é uma bênção tão abençoada que a gente nem consegue perceber
é muito diferente, eu sei, ter insônia no leito da rainha ou com a cabeça mal acomodada sobre as pedras. mas no fundo dos olhos abertos um mesmo assombro define a raça humana
quem foi a primeira pessoa que, ainda sem esse nome, estatelou na madrugada sem nenhum motivo além de um eco crescente na cabeça que badala: eu? nunca vamos saber. mas essa pessoa, ou quase, é tão eu quanto eu posso ser, agora às cinco da manhã, com medo de que o dia acorde sem que eu tenha ido dormir
o que nos une, um dna de ectoplasma, se você quiser, são esses gritos do silêncio, esse vácuo que ricocheteia na cabeça. é, em suma, o medo de não morrer: então o cansaço não vai me levar ao descanso? quando os olhos se fecham, é uma bênção tão abençoada que a gente nem consegue perceber
recuperação da adolescência
andando há tanto tempo
neste acostamento
nem parece
que as solas do sapato furaram
o sol sobre a cabeça
dá voltas em volta da terra
e ela
se move
pra asfalto nenhum botar defeito.
roda
de hamster
escada rolante
esteira
em que homens de regata e mulheres
de rabo de cavalo
correm imóveis
até a eternidade.
o tempo já passou
de andar sem rumo em estradas pavimentadas. agora
eu passeio
no informe
o destino
é certo
neste acostamento
nem parece
que as solas do sapato furaram
o sol sobre a cabeça
dá voltas em volta da terra
e ela
se move
pra asfalto nenhum botar defeito.
roda
de hamster
escada rolante
esteira
em que homens de regata e mulheres
de rabo de cavalo
correm imóveis
até a eternidade.
o tempo já passou
de andar sem rumo em estradas pavimentadas. agora
eu passeio
no informe
o destino
é certo
quando acabam as palavras da bolsa, o canguru precisa percorrer todo o deserto e mais alguns quilômetros em busca de novas palavras
alcançadas as orlas dos mares do continente e caminhadas em círculos contínuos vários anos, ele enfim se recorda de que vive numa ilha imensa mas ilha
a tristeza da percepção de finitude e de prisão se junta à alegria revigorante da beleza dos horizontes da austrália isolada
então o canguru volta para casa desertos adentro, com novas palavras fecundadas no seu bojo
alcançadas as orlas dos mares do continente e caminhadas em círculos contínuos vários anos, ele enfim se recorda de que vive numa ilha imensa mas ilha
a tristeza da percepção de finitude e de prisão se junta à alegria revigorante da beleza dos horizontes da austrália isolada
então o canguru volta para casa desertos adentro, com novas palavras fecundadas no seu bojo
quarta-feira, 10 de janeiro de 2018
o nosso problema
o nosso problema é de sensibilidade. porque o excesso de história, o de imagens e o de informação nos levaram a uma anestesia dos sentidos físicos e não físicos. a pornografia leva à incapacidade do orgasmo por meio da repetição sem pausa do orgasmo.
o desafio é vencer a compulsão e o cansaço e ao mesmo tempo viver entre as suas causas e os seus efeitos. porque ninguém aqui tem a capacidade de voltar a fazer pão com as próprias mãos, e os que têm só o fazem porque contam com faxineiras pra limpar a cozinha depois, e as faxineiras comem bolachas recheadas e vivem também no cansaço e na compulsão. os que podem prescindir disso pertencem à classe social dos canalhas e não devem ser invejados.
o nosso problema é encontrar novas zonas sensíveis enquanto nos afogamos no entulho. o planeta já foi pras cucuias. o desafio é sobreviver e, mais, aflorar. conseguir o gozo no lixo.
o desafio é vencer a compulsão e o cansaço e ao mesmo tempo viver entre as suas causas e os seus efeitos. porque ninguém aqui tem a capacidade de voltar a fazer pão com as próprias mãos, e os que têm só o fazem porque contam com faxineiras pra limpar a cozinha depois, e as faxineiras comem bolachas recheadas e vivem também no cansaço e na compulsão. os que podem prescindir disso pertencem à classe social dos canalhas e não devem ser invejados.
o nosso problema é encontrar novas zonas sensíveis enquanto nos afogamos no entulho. o planeta já foi pras cucuias. o desafio é sobreviver e, mais, aflorar. conseguir o gozo no lixo.
quinta-feira, 4 de janeiro de 2018
cada gripe ou joanete que arde
é um pouco de morte em meio ao combate
bem-vindo
fim dos dias
anunciado pelo horizonte
por uma brisa que passa
saudáveis de novo
voltamos a não perceber
a vida
que de todos os lados
ataca
impiedosa
perdidxs no campo entre os mortos
sem saber esperamos um novo vírus
uma nova enxaqueca inofensiva
bem-vinda
é um pouco de morte em meio ao combate
bem-vindo
fim dos dias
anunciado pelo horizonte
por uma brisa que passa
saudáveis de novo
voltamos a não perceber
a vida
que de todos os lados
ataca
impiedosa
perdidxs no campo entre os mortos
sem saber esperamos um novo vírus
uma nova enxaqueca inofensiva
bem-vinda
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