domingo, 27 de dezembro de 2015

os livros

É o pó do primeiro ao último. Quando você chega no último, precisa voltar tudo de novo. A bibliotecária pergunta se ele entendeu, ele diz que sim e ela se vai. Então começa: tira o livro da prateleira, passa a flanela na capa, na quarta capa, entre as dobras que ligam a capa às páginas moles do miolo, no entorno, e folheia rapidamente tudo, feito um voo, pra espantar o pó. Sente o nariz coçando embaixo da máscara. Tem vontade de enfiar o dedo na narina, pegar um pedaço de ranho e enfiar na boca. Mas luvas máscaras muito trabalho, muita sujeira. E pega o segundo.

A biblioteca tem infinitos livros. Todos eles escritos numa língua que você não sabe ler, que são todas. Você não sabe ler. Você nunca limpou uma biblioteca de infinitos livros. E, mesmo assim, todo dia está tirando pó, e todo dia está lendo as coisas de que tira o pó. É assim.

Agora faz uma pausa pro café. Este texto era pra ser um manual de instruções pra limpeza da biblioteca. Quando volta do café, com uns restos de bolacha úmida de saliva maçarocados no buraco do molar, você pega este texto e passa-lhe a flanela.

*

Ontem eu limpei todos os meus livros. Hoje, mudando uns de lugar, percebi de novo pó. Se eu não tivesse livros, o pó estaria nas coisas que eu tivesse. Se eu ficar bem quieto, fico empoeirado.

*

Eu morri, com esperanças de que nunca mais tivesse que lidar com o pó. Ai, que desengano. A alma é o pó que cai nas coisas.

*

Mas eu não tenho alma. Que sorte. Virei um vazio, um avesso, uma voltagem perdida dos fios. Virei um naco de matéria escura, onde o pó não se acumula.

*

Das prateleiras, os escritores mortos riem de mim ao rirem deles mesmos. Você tenta esculpir uma palavra. Você consegue e ela brilha. E depois a poeira a torna fosca, tosca, o desdém é um destino acidentado, porque logo vem o moço da flanela e uma brisa enche os pulmões das páginas amareladas, mas ninguém consegue insuflar fôlego simultaneamente em todos nós, escritores mortos, e quando morremos nós somos todos um só, todas e todos, conjugamos mofo e refrescância, somos casa do nada, do tudo e do pó.

*

Palavras,
poeira
organizada.

*

Palavras,
flanela
passageira.

*

O salário é uma safadeza pra esse tanto de trabalho. Olho a bibliotecária com raiva e disfarço quando ela pergunta: falta muito? Ah, falta, sim, senhora. Olhamos a extensão das estantes se perder na queda do horizonte. Ela suspira, tudo bem. E volta à mesa dela, onde cataloga cada um dos volumes infinitos. Eu volto pras estantes.

Alguns livros, eu pulo de propósito. Quando ninguém está por perto, bato uma punheta em algumas páginas, vão ficar grudadas com a minha porra escondida nas palavras. Ou então tiro a luva, tiro o ranho, mordo e guardo a gosma verde, espessa de pó, no buraco do dente, com o resto da bolacha.

As estantes não acabam.

Saboreio enquanto posso.

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