quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Pescoço, pé, como era mesmo a ordem do corpo

Olha e recomeça: pescoço, peito, perna, pé

O que vem antes, o que vem depois, e o que vem no meio

Um roliço contundente, decidido, vem no meio. O cu se contrai e se dilata contra a vontade. Poucas dores (locutora do documentário pra televisão) poucas dores se assemelham a essa, segundo os médicos, que provaram todos do roliço impaciente, você diz

Para, para...

E ele se retrai meio confuso. O sorriso em cima de tudo diz "calma, respira", porque não é no dele.

A sua mãe fala:

É sempre mais fácil quando não é com a gente.

Ela deve saber. Pois foi a sua mãe que com o rolocompressor esmagou Gothan City.

Esta é a história da sua mãe:

É uma noite fria entre os lençóis do Homem-Morcego, já acostumado à solidão ele nem nota, e até prefere. O treinamento dos heróis requer muitas noites ao relento, e com conforto ninguém luta. Bruce Wayne treme mas se mantém firme no propósito: de dormir até que seu corpo e sua mente se reencontrem e ela possa sair pela cidade, sedento, caçando criminosos.

Esta noite, no entanto, algo o interrompe: a mansão Wayne no meio de um terremoto, quantos ataques terroristas, pesadelos, a guarda baixa do Homem-Morcego são necessários pra fazer tremer o chão e as paredes, pra que o mordomo fique preso entre os escombros e suspire aos ouvidos do amo as palavras finais: "Eu te amo".

Um arrepio diferente percorre o corpo rígido de Bruce Wayne. Seus olhos adquirem a consistência de vidro fino numa tempestade, o vento uivando em seus ouvidos, Bruce Wayne sente uma lágrima que ferve ao descer por suas bochechas. Em instantes, o Batman aparece de capa e cinto e cueca aparecendo, uma armadura o Cavaleiro das Trevas escala os ares à procura do motivo do estrago.

Sempre.

Tem.

Um motivo.

Pro estrago?

No intervalo comercial, infinitos sorrisos assombram a sua tristeza. Dentes brancos, livres de cáries, ameaçam te morder.

As trevas ressurgem quando você quase já não resistia. E a sua mãe triunfante reivindica o fim de Gothan City, é ela, vê?, de avental sobre o rolocompressor.

Que esmagou os crânios das criancinhas, do comissário Gordon, de todos os supervilões que escondidos não puderam se proteger, A sua mãe não aceita alianças. A sua mãe não tem piedade.

Através da tela, ela olha diretamente pra você. Cuidado. O amor que ela sente não tem fim.

Quem poderá acabar com esse terrível amor incondicional?

Eis que da noite se forma um homem escuro, imenso, com sede de vingança. Suas botas de ferro no peito da mãe arremessam pra longe aquele corpo que não fosse ser mãe seria

Como.

Qualquer.

Outro.

Com um tiro um estilingue um bumerangue em forma de morcego, o Cavaleiro das Trevas desliga o motor do monstro e salva a Gothan City uma vez mais.

Com a Bat-Corda amarrada no quadril, o Batman chega ao chão e trava o maxilar: em volta, prédios e asfaltos tingindo do sangue negro da noite de Gothan.

E.

Entre ferros retorcidos e carros revirados.

Está.

A sua mãe.

O Cavaleiro das Trevas avança com ódio em direção a ela. Você matou os meus amigos, os meus inimigos, a minha cidade!

Enquanto ele percorre com os dedos os compartimentos de seu cinto, a mulher recobra a consciência após a queda e, percebendo sua derrota, chora.

Na lágrima que agora escorre no rosto da sua mãe, prestes a ser executada, o Homem-Morcego vê sua vida: a infância breve com os pais assassinados, um mordomo de mãos firmes no seu ombro adolescente, a vida ociosa e sem descanso de um bilionário vingativo.

Por trás da máscara de tecido sintético que deveria imitar um morcego, Bruce Wayne sente uma onda de calor envolver seu corpo. E diz a palavra que, desde menino, nenhuma mulher jamais lhe respondeu:

"Mãe"

A câmera se afasta dos dois corpos prostrados no chão derrotado, e sobe mostrando a destruição sem fim que se tornou Gothan City, e os Estados Unidos, e a América, e o planeta Terra. Mergulhada agora na densidade escura do espaço, a câmera descobre que o universo não tem dias e não tem noites.

Também não tem heróis nem mansões.

Mas.

Mais importante que tudo.

O universo.

Não tem mãe.

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