domingo, 31 de janeiro de 2016

áspera
a sola
de dez
mil
pares
de pés

roça
o chão
de navios
cavernas
casebres
igrejas
em que os parentes ganharam
e perderam seus nomes
eu nunca
vou saber

mais
do que meia dúzia
de palavras
a mãe da nonna
jogada no Atlântico
e o pai do nonno
louco
de tanto ler a Bíblia

partos
no meio do mato
estupros
e bichas perdidas
dos fatos
da família

imagino uma grande reunião
os mortos infinitos no sonho mais eu
nos olhando com espanto e reconhecimento
um lapso o rastro genético, e foda-se
é o que pensamos
segundos antes de virar as costas
e andando
acordar

domingo, 24 de janeiro de 2016

Um bolo de aids foi servido no seu aniversário

Em volta os convidados batem palmas na lipodistrofia

Seringas cheias de porra o novo canapé

E mantêm uma distância de dez metros cada um

Os copos descartáveis o látex descartável

Masturbe-se em cima do bolo e coma ele sozinho

As lembrancinhas são de herpes gonorreia sífilis

A volta pra casa acontece por ruas iluminadas onde ninguém

Mais tem medo

De mais nada

Antibiótico antirretroviral antiapocalipse

Mais um ano pela frente até a próxima volta do Sol

Até o momento em que você começou a escolher viver

E pra isso tinha que tomar banho e se alimentar

E manter o desejo a uma distância

Segura


*


Numa sala observada / o aniversariante abre os presentes / mais uma cartela de comprimidos / é bom guardar no cofre / ano que vem com a troca do governo / com a queda do oxigênio / vão ficar muito mais caros


*


Um bolo de aids

Um bolo de câncer

Um bolo de espera


*


Aplicativos pornografia corpos na cabeça

Quando você morrer

Cosplay de homem-bomba uma metralhadora de porra

Setenta e dois rapazes de cock ring te esperarão

No extinto Cine Saci da avenida São João
Não acredito em

Inconsciente. Os passos dados se apagam

Pois o passo presente é a lâmpada.

Os sonhos são feitos

De demônios sem moral. As lembranças

São atos nostálgicos do mistério. E os atos

Nunca são falhos. O cérebro é

Uma carne que aguarda

Decompor-se. A vida

Desperdiça

Cada coisa que recolhe

Porque Deus preparou-lhe

Abundância de uma mesa na presença de sua amiga,

A morte.
Os cachorros deitados no mato

Entre as plantas cuidadosamente escolhidas pela grana

Sobre a terra remexida por minhocas vivas e bandeirantes mortos

Três metros quadrados de lembrança da floresta

Inscrita nos neurônios anônimos no perispírito paciente

Meu, da minha amiga e dos cachorros

Indiferentes ao domingo

Deitados no mato

domingo

Eu era acordado pela minha mãe
pra que pusesse a melhor das roupas
Deus não merece menos
a gente ia pra igreja na carroceria cheia de graxa
da caminhonete do meu pai sentados em cima de um papelão pra não sujar
a melhor das roupas

Hoje eu acordo no horário em que sairia do culto
sonho com a polícia militar e acordo com o barulho dos meus cachorros e dos passarinhos no mamoeiro
e lembro de Deus quando vejo as hastes secas
fechadas em si mesmas do vaso de capim-cidreira
faz dois dias que esqueço de regar

Quando a terra encharca de água
proveniente do sistema estatal de abastecimento hídrico do estado de São Paulo
pouco tempo depois as folhas do mato inflam e retomam a vida de onde
haviam parado

Deus é a caminhonete
a graxa
o chamado da minha mãe
a água e a polícia e o regador
o sonho e o esquecimento e a igreja
a melhor roupa e a camiseta esburacada
que eu visto agora porque me faltam outras
e o sol forte que seca as plantas
desamparadas

Eu sou o capim-cidreira

sábado, 23 de janeiro de 2016

o quarto azul

As paredes
escorrem dos teus olhos em mensagens de ex
amantes e amigos que agora vivem tão distantes quanto
os anos que você imagina se afastando
à medida
que sobe os olhos pelas paredes que
escorrem

Adolescente
cérebro
impedido em crânio antigo
de tocar e lamber e gozar nas bochechas gordas de um amigo imaginário
guardado na vontade de exceder
o concreto
das paredes secas e imóveis deste quarto e do teu
cérebro

Um cubo azul
como os lábios de um morto nunca visto que em vida te acompanhou
quando o corpo preso em medo e palavras de parentes não tinha alternativa
além
de se acompanhar
a si mesmo

Peito buraco e caralho mole

Encolhem na descida dessa nuvem carregada
que escorre

Queda
Destino de Tudo
Crave
as unhas nas paredes e evapore a Palavra
única circunstância de subida do impotente

Ela vem
Um colar de Dinamite
Explode o orgasmo guardado entre esses ossos indistintos não fique triste agora

Você

Pode parir o momento infinito no momento
exato em que o estalo esmorece Não Fique Triste

Agora
e Sempre

Você pode

Morrer

diário

mas
um
dia

o peito
leve
acorda

pulmões
depois
de uma batalha pelo ar

suspiram
alívio
éter no lugar de chumbo

queridos
dias
agentes de tortura do Tempo

alternam
a mão
forçando minha face no esgoto

e o peito
macio
recebendo minha cabeça cansada

até
quando
vou

aguentar essa alternância
de amor e desespero
e silêncio sereno antes da angústia

o Tempo
numa sala
iluminada e distante dos porões da verticalidade

em que a massa do planeta
torna tudo
mais
lento

aguarda
que eu responda
essa pergunta

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

batalha

O exército de minutos que o dia manda
em seus ponteiros e pixels invisíveis caindo chuva de chumbo nos ouvidos nos nossos ombros
abrem sete bocas a cada uma que entopem
com os comprimidos e a comida e a previsão de médicos limpos
de uma vida de látex e aids inocente

Eu sinto
cada um desses minutos marchando na capa gorda do fígado
escondido entre as orelhas de uma enxaqueca que compartilho
com
cada
um
dos meus
contemporâneos

Também eles às voltas com vírus
com sorrisos estéreis embaixo de máscaras impotentes
contra o gás carbônico que o chão sendo queimado expele na esperança
de nos
matar
a todos e retomar o império dele de fóssil inútil camadas de mucosas
decompostas, sete bilhões de pessoas
punidas por Deméter com um desejo
infértil

Memória
de ponteiros que desciam uma lâmina
de justiça sobre a nuca dos medos
jamais
esses ponteiros
venceram

Relógios esperas abraços de morte das mães meu fígado
assassino e minha cabeça
explodindo competem
pra saber quem será digno
de que eu diga
seu Nome.
eu tenho passado os dias
como se os dias não passassem

como se o meu tempo orgânico
coincidisse com o vácuo em que o planeta gira

mas mesmo esse vácuo é cheio
de mistérios e movimentos complexos das rochas que o preenchem

pensando bem, esses dias
tenho passado mesmo como nada que eu conheça

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

reto
receptivo
intestino

imagine
se a porra viajasse
por todas as tripas

atravessasse as feridas
da mucosa exposta
no triunfo

entre vielas e becos
se arrastasse
pela parte delgada

a que possui
mais neurônios
depois do cérebro

sem ser percebida
por fígado e pâncreas
chegasse no estômago

e ali gestasse
em ácido e alimento
um novo tamanho

diminuído
pra passar enfim
pelo esôfago

e alcançar
o sino
a tempo

de florir
a garganta e os dentes
e a língua em sons

matinais
espuma branca
de Urano no mar

de saliva
da boca
saísse

imagine
nascida em palavras, canção
tua porra

querido tempo

da ponta do dedo
pras células moléculas
e átomos e campos
magnéticos

um dedo
nunca toca
nada

porque as partículas
quando se aproximam
se afastam

*

mas a gente
não sente
em nível atômico

ou estaríamos com vertigem
o micromundo se movendo
o tempo todo

eu deitado
ao meio-dia me escondendo
do futuro um lençol na cabeça

vomitaria
nauseado
movimento

em vez disso
guardo todo o suco gástrico entre as paredes
incrivelmente imunes
do meu estômago

*

a gente também não sente
no nível macro entre as estrelas
a escura matéria que intriga astrofísicos no século de Einstein

ela é invisível e intocável pra alguém tão preso
à atmosfera e ao funil no tempo-espaço
que se chama por aí de gravidade

uma queda
infinita

com o peso de uma atmosfera sobre a cabeça
e o peso de um planeta
sob os pés

uma queda
imóvel

nesta cama de lençóis cheios de ácaros
me identificando a um corpo variado
em seus espaços e nos sólidos
incógnitos

*

querido tempo
que me aperta
em mim mesmo

e atravessa
os lugares vácuos
que eu não conheço

chegue súbito
feito um
pombo-correio

e me entregue
uma mensagem
diferente

orgasmo
equilíbrio
esquecimento

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Marcião

Deixa ela me bater! Um bando de bunda-mole vem separar. Continuo pondo o dedo na cara da mina e levo um chute. Quem você pensa que é?! Cê acha que eu vou revidar?! Todo mundo vai embora, ninguém me dá mais trela. Falta meia garrafa pra beber. “Você é um babaca”, alguém grita de longe. Bebo o resto. Ele anda em círculos no meio da rua. Leva um coió da polícia e senta entre as árvores. Quando amanhece, a cabeça pesa, não lembro de mais nada. Olho a primeira que passa. “Gostosa.” Ela nem imagina. Se imaginasse, também me batia.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

o fim constante

A vida é espera. Faltam três dias. Mas quando passam dois, antes que termine o terceiro, precisa esperar sua metade: o sol é lento no céu. A enfermeira traz o almoço, uma sopa rala. Antes que ela traga, você precisa acordar. E nem dormiu. Então precisa: dormir, acordar, comer, digerir e morrer. E não consegue fechar os olhos. Sob as pálpebras, estão sempre abertos. De repente, como se piscasse, tudo acontece: o terceiro dia chega e já está quase no fim. A vida é esperar o fim da espera. Meia-noite, madrugada, o quarto dia acorda. O tempo não se importa.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

devir animal

Acordado agora, uma tira pra fora da boca / sou um mágico / oito metros de tripa oca se desenrolando / e são mais oito. A cada dia, oito metros de esôfago crescem pra fora dos dentes e dos lábios. Já anda com um carretel, vai pro trabalho, umedece ou a mucosa racha. Tem quarenta anos de idade, oitenta metros de esôfago (a cada dez dias faz uma cirurgia). Chega de negar. Agora chama “tromba” – eu, “elefante”. Uso a tromba pra roubar comida dos restaurantes. Quando a polícia corre atrás de mim, pisoteio as viaturas e saio pela cidade, savana.

domingo, 17 de janeiro de 2016

A grande purga de 1984

Começou na lâmina que me arrancou

Do intestino de uma mulher desacordada

Dos intestinos dela, e rápido

A reprodução desenfreada das células me trouxe

A este um metro e oitenta e três

Centímetros e cento e dez quilos

De células

Movediças

Atrapalhadas

Armadilhas

Apoteose

Da grande purga:

Eu sou a tripa;

O tempo,

A lâmina
o dia que você pular
de paraquedas rumo ao chão

não esqueça de puxar
o piloto do avião

agarre o braço do comissário
enlace toda a tripulação

leve as asas pra cair
o trem de pouso e o timão

o dia que você pular
não desista no caminho

não queira encontrar saudade
nem virar um passarinho

não mire numa cidade
nem na casa do vizinho

não espere encontrar o chão
porque ele pode não vir, não

Saturno

Que lindo você é

Gordo e cheio de anéis

Girando iluminado

Cercado de escuro por todos os lados

Invisível a olho nu

Mas enorme

Manchado de caneta hidrocor

Na página de um livro

Brinde da compra de chocolates

Quando eu era

Criança

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

os rostos

Um rosto de água
se agita debaixo
do rosto de terra
e dá para ele a cara
fértil que às vezes
você olha

Em volta, invisível,
meu rosto de fogo consome
os dias e as noites são carvão
arrancado pela morte das minas de trabalho

Enquanto vário e aéreo
flutua perdido um rosto
verdadeiro, feito
de ar, promessa
de vento

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Eu disse que a noite era líquida. Ele não acreditava. Nadei pra longe e ouvi o nariz se afogando em borbulhas. Reconheci umas sílabas. "Que nada!"

*

Meus braços cansados e um medo de tubarões, são noturnos os terrores da noite? Li que eles comem às cinco da tarde. Deixo a cabeça meio erguida, pra que a noite não entre no meu nariz. E flutuo na superfície de quilômetros, escuro. 

*

As horas antes do dia
se iluminam
com a mesma melancolia
do crepúsculo

Mas são mais frescas
derrotadas
as horas antes do dia.

*

Essa praia serve, porque agora o profundo acorda. Tenho medo de ser comido. A televisão me informa: tem animais caçando. O. Tempo. Todo. Desenho na areia uma silhueta do meu amigo afogado na noite. O dia é seco e chato. As ondas lambem as pernas dele e levam elas embora. Eu queria ser as ondas.

*

O planeta
você sabe
é simultâneo
a si mesmo
não conhece
o absoluto
escuro ou claro
tem uma face
esférica
voltada
pra todos 
os lados

*

Deus
é luz

Estou
à sombra
do Pai

Por que
não Se
move

Por que
não some
Senhor?

E a luz
de Deus
distante
deixou
de iluminar

Agora
a nossa cegueira é mais pura
solitária
é só nossa

Era esse escuro
que você queria?

A noite, de novo
nos molha.